Durante o mês de março as propagandas na televisão mostram celebrações e flores. Trata-se de uma cortina de fumaça para as reportagens veiculadas ao longo do ano sobre a permanente violência contra mulher. Com objetivo de aquecer as vendas e garantir o lucro, festeja-se a data e homenageia-se as mulheres, destacando-as como vencedoras ou investidoras. A mesma televisão busca esconder nos sorrisos fabricados do “Feliz Dia!”, as mulheres que, organizadas com suas próprias bandeiras, flores, cantos e tambores, denunciam as inúmeras violações que uma sociedade patriarcal, racista e capitalista impõem sobre seus corpos e territórios.
No Brasil, de modo geral, ainda que conquistadas importantes leis como Maria da Penha (11.340/2006) e a Lei do Feminicídio (13.104/2015), a violência contra as mulheres tem crescido a cada ano. Segundo dados da CEPAL, 40% de todo o assassinato de mulheres pela condição de gênero ocorrido na América latina e Caribe ocorrem no Brasil, sendo que a nível mundial o Brasil é o quinto país que mais assassina mulheres.
Dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos apontam que de janeiro a julho de 2018, o Ligue 180 registrou 27 feminicídios, 51 homicídios, 547 tentativas de feminicídios e 118 tentativas de homicídios. No mesmo período, os relatos de violência chegaram a 79.661, sendo os maiores números referentes à violência física (37.396) e violência psicológica (26.527).
Contudo, estes números não trazem a violência efetuada contra as mulheres trans, sendo que o Brasil também está no topo do ranking de violência contra a população trans. Estão ausentes também dados a violência contra as mulheres do campo e das florestas. Considerando a questão étnico racial, no período de 2006 a 2016, enquanto a taxa de homicídio de mulheres brancas caiu 8%, a de mulheres negra cresceu 15,4%. Alguns estados como Roraima, por exemplo, desponta como o estado brasileiro com maior índice de violência, não distinguindo destes dados a agressão de mulheres indígenas.
Desde a gênese do latifúndio, com a escravização dos povos originários e dos povos africanos, as relações sociais do campo brasileiro se constituem historicamente com a dominação econômica e patriarcal. No atual processo de desenvolvimento do capitalismo, essas sãos as mesmas relações que continuam por meio do agro, hidro e mineronegócio e são a condição fundamental para que as grandes empresas continuem aumentando seu lucro.
Nesse cenário, os obstáculos para romper com a relação de dominação do masculino sob o feminino aumentam ainda mais. A violência que acomete as mulheres do campo e das florestas tem múltiplas faces nas relações cotidianas, no âmbito familiar, na questão da exploração sexual e no tráfico de mulheres e é a mesma violência usada no combate às mulheres organizadas e lideranças que se levantam contra o poder do capital sobre seus territórios.
Os frágeis instrumentos de combate à violência contra mulher que conquistamos não alcançam as mulheres do campo e das florestas. Distantes dos centros urbanos, marcadas pela pobreza e pela ausência de educação formal, essas mulheres não acessam informações sobre as políticas públicas e tão pouco estas chegam até elas. Isso fica evidente quando buscamos os dados sobre a violência contra a mulher do meio rural: não dispomos do diagnóstico e menos ainda de instrumentos de combate.
Dentre os dados fornecidos por ONGS, há poucas pesquisas acadêmicas sobre essa questão e as denúncias dos movimento de mulheres de luta pela terra e território são fragmentados na sua abrangência temporal e territorial. As mulheres do campo que sofrem violência doméstica vivem grande isolamento e solidão, não havendo espaço para acolhida e tratamento das vítimas. Essas mulheres, sem as condições para autonomia financeira e alijadas do atendimento por políticas públicas, estão submetidas a um processo extremo de violência que é invisibilizado.
A outra face da violência contra as mulheres do campo são os assassinatos, as perseguições e a criminalização de atos na defesa dos seus territórios ameaçados constantemente. Vale dizer que os agentes dessa violência são multifacetados, alguns pertencentes ao Estado e outros são intermediários privados, ambos a serviço do latifúndios e das grandes empresas de mineração. Assim, entendemos que a violência patriarcal e capitalista atinge a todas as mulheres, mas a classe social, a etnia e o lugar onde essas mulheres vivem são fatores que determinam a forma como elas experimentam tal violência.
Em 2019, com a ascensão ao poder de um governo de extrema direita, as já incipientes políticas públicas voltadas para as mulheres estão sendo extintas. Com a Reforma da Previdência, o maior ataque aos direitos da classe trabalhadora brasileira, as mulheres são as mais atingidas. Tal reforma desconsidera as duplas e até triplas jornadas de trabalho das mulheres. igualando a idade para a aposentadoria com os homens; que as mulheres já recebem salário inferior aos homens (na média a mulher recebe 74% do salário). É necessariamente olhar também o recorte de raça/etnia, pois enquanto a mulher branca recebe em média 30% a menos que o salário dos homens, a mulher negra chega a 63% a menos.
No caso das mulheres do campo, a situação se agrava ainda mais, uma vez que muitas mulheres começam a trabalhar antes dos 14 anos de idade. A proposta da reforma da previdência é que a mulher se aposentaria com 60 anos e não mais com 55, como é atualmente. Diante disso, as produtoras rurais atualmente ocupadas terão que trabalhar entre 41 e 46 anos para atingir a idade de aposentadoria, numa realidade na qual a expectativa de vida média não passa de 65 anos.
A criminalização dos movimentos sociais, os cortes de políticas públicas para a reforma agrária e para demarcação dos territórios indígenas, e o fechamento das escolas são outros fatores que comprometem a vida de quem vive no campo e nas florestas. Somam-se a isso os crimes das grandes mineradoras cujas empresas nunca foram responsabilizadas. Assim como em Barcarena-PA e Mariana-MG, vivenciamos em 25 de janeiro de 2019 o crime da Vale em Brumadinho-MG, mostrando um Estado que submete as necessidades humanas às demandas do capital: o lucro acima da vida.
De forma sintética, podemos dizer que o capitalismo no campo e na cidade se perpetua em uma simbiose racista patriarcal, e esta simbiose se manifesta na autorização de agredir mulheres, negros/as, povos indígenas e LGBTQ+. Dessa forma, pensar em Março como mês das mulheres é necessariamente pensar em luta pela superação de todas as formas de violência que estas experimentam sobre seus corpos e territórios. Nesse Março, as mulheres em luta têm como objetivo ser a voz daquelas ainda silenciadas, isoladas pelos rincões do país. Buscam denunciar a impunidade dos crimes contra as mulheres, entoar seus cantos de rebeldia, ocupar as ruas e os latifúndios e gritar: basta de violação sobres corpos e vidas.
Adriana Rodrigues Novais, socióloga e integrante do setor de Gênero do MST
Lucinéia Freitas, doutoranda em Saúde Pública e integrante do setor de Gênero do MST
*Artigo originalmente publicado na página do MST