O patriarcado não pode ver mulheres se juntando que já encontra motivos para desqualificar, diminuir, ironizar ou criminalizar. Quando se trata de debater política e transformações estruturais na sociedade então, a elaboração do ataque é ainda mais ardilosa com a veleidade dos especialistas em generalidades.
Portanto, ao analisar as composições históricas da organização das mulheres no Brasil, é importante ter o olhar preciso e apurado: para cada passo dado, para cada mulher que se dispõe a se unir a outra, há um sem número de violências, silenciamentos e opressões que foram ultrapassados até que ela chegasse ali. Cada novo marco é o fôlego necessário para seguir em frente, mais uma volta no pedal para nos manter de pé, em movimento.
A iniciativa Carta Aberta Brasil Mulheres 2022, idealizada pela ex-senadora Marta Suplicy, foi um desses exemplos. O evento reuniu 35 mulheres de diversos setores da sociedade para pressionar presidenciáveis sobre as nossas pautas – e o Brasil que queremos construir no pós-Bolsonaro. Estive entre elas para debater pontos estratégicos como a luta pela igualdade de gênero, por uma vida sem violência, o combate ao racismo e a todas as formas de preconceito, economia do cuidado e, sobretudo, a centralidade das mulheres na reconstrução do país.
A história de luta política das mulheres nos ensina a ter uma perspectiva mais ampla e complexa dos acontecimentos – ou, por assim dizer, de entender quais os processos construção de sínteses para que tal mobilização e unidade pudesse ocorrer, neste contexto histórico, com esse grau de representatividade.
Para isso, seria legítimo fazer um resgate de décadas e até de séculos, mas vou me ater aos últimos anos de governo Bolsonaro que condensou e aprofundou os males velhos e adicionou ódios novos – capazes de mobilizar uma gama de reacionários sob o mesmo dossel.
Em 2018, as mulheres lideraram uma das maiores mobilizações mundiais em torno do #EleNao e até ouvimos que fomos responsáveis pela eleição de Bolsonaro – nós, mulheres, que o rejeitamos em todas as pesquisas desde 2018 até hoje. Desde então, não paramos de ir às ruas, desde que fosse minimamente seguro por conta das restrições sanitárias.
Mulheres parlamentares, em nível local e nacional, trabalharam incansavelmente para garantir políticas públicas e sociais que dessem conta do agravamento da crise econômica, fruto da incompetência governamental na gestão da crise sanitária. Mulheres negras levantaram suas vozes e marcharam contra o racismo estrutural que assola e define o país que somos hoje.
A fome e o desemprego bateram primeiro na porta das trabalhadoras, chefes de família, mães solo, mulheres negras, de periferia, ribeirinha, indígenas e quilombolas. Ações de solidariedade espraiaram-se por todo país pelas mãos de movimentos sociais, populares, partidos progressistas e organizações não governamentais. Fomos às ruas contra o aumento do custo de vida – no preço dos alimentos, gás, conta de luz e produtos de primeira necessidade.
Não houve um 8 de março em que não houvesse uma denúncia contundente sobre a violência e o feminicídio que se abatiam sobre a vida das mulheres, principalmente por conta do confinamento e do fechamento dos serviços de atenção à mulher. Denunciamos o desmatamento da Amazônia, do Pantanal, os pacotes de veneno e agrotóxico aprovados no Congresso, da importância de se elaborar e implementar novas formas de vida, sustentabilidade e bem-viver.
No campo da representação política, levantamos o bastião em defesa da cota de 30% de mulheres nos fundos eleitorais – um direito que ameaçaram nos retirar em meio a uma “mini” reforma eleitoral. Nos organizamos, mulheres de partidos políticos, na defesa e na proposição de ampliação da participação feminina na política. Mulheres de movimentos populares e sociais tomaram a frente de iniciativas de ajuda imediata, por conta da fome, dos efeitos da chuva, de desastres ambientais causados pela ganância do lucro.
Mulheres de todas as regiões do Brasil, não apenas dos grandes pólos econômicos, ganharam notoriedade na reivindicação de direitos e de políticas que fazem sentido para suas realidades. Lutamos pelas causas que abrangem a diversidade das brasileiras e, principalmente, as que estão em maior situação de vulnerabilidade. Pelas mulheres indígenas, negras, de periferia, lésbicas, bis, transsexuais, quilombolas, ribeirinhas, do campo, das águas e da floresta – sobre as quais a crise econômica, social e sanitária se somam ainda mais ao peso do patriarcado, do machismo e do preconceito sobre suas cabeças.
A partir desse conjunto de iniciativas, as pautas feministas, antes restritas a “caixinhas de mulher”, rompem barreiras e ganham contornos em debates estratégicos para a sociedade. A ‘transversalidade’, essa palavra tão complicada, quer dizer apenas que a mulher é gente e, portanto, é atravessada por todas as pautas pertinentes ao interesse público.
Dessa forma, busca incessante pela sobrevivência, um aspecto salutar da vida das mulheres no sistema capitalista, e a luta incansável por um mundo melhor permitiram esse ciclo de construção de sínteses ao longo dos últimos anos – culminando em novos ‘fôlegos’ da luta feminista desde as mobilizações mais capilares até a reunião Brasil Mulheres 2022, imprescindível para avançarmos nas pautas das mulheres para o próximo período.
Portanto, mais do que um oxigênio em nossas reivindicações, a Carta Aberta é a sinalização de que nós, mulheres, seguimos unidas e fortalecidas em movimento histórico e secular na luta por um Brasil sem machismo e livre de Bolsonaro.
*Anne Moura é feminista, indígena, manauara e petista. Secretária Nacional de Mulheres do PT. Criadora do Projeto Elas Por Elas. Participa do grupo de mulheres do Foro de São Paulo e da Copppal (Conferência Permanente dos Partidos Políticos da América Latina).