Uma semana marcada pelo acúmulo de movimentos desastrosos da diplomacia brasileira culminou com o anúncio da iniciativa patrocinada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), nesta sexta-feira, 24, para angariar 7,5 bilhões de euros (R$ 45,3 bilhões, no câmbio atual) a serem investidos em projetos de cooperação internacional relacionados a prevenção, diagnóstico e tratamento da Covid-19.
O objetivo é o compartilhamento de informações e conhecimento entre as nações, mas um porta-voz da missão diplomática dos Estados Unidos em Genebra afirmou que o país não participará da iniciativa. E se historicamente o Brasil é conhecido por liderar o tema de distribuição de medicamentos, dessa vez parte do governo sequer sabia do evento, segundo o jornalista Jamil Chade em sua coluna no Portal UOL.
Reunidos em uma videoconferência com a participação de Bill Gates e da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, a chanceler alemã, Angela Merkel, o presidente da França, Emmanuel Macron, e o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, reafirmaram o compromisso de que novos tratamentos para lidar com a pandemia chegarão a todos.
Participaram ainda do evento chefes de Estado e de governo da África do Sul, Costa Rica, Itália, Ruanda, Arábia Saudita, Noruega, Espanha, Reino Unido e os líderes da União Africana e G-20. Falaram também representantes de parceiros como a Aliança Global de Vacinação Gavi, o Fundo Global Contra HIV, Tuberculose e Malária, o Banco Mundial, Cruz e Crescente Vermelho e várias associações científicas e industriais.
OMS necessária
“O mundo precisa dessas ferramentas e precisa logo. Enfrentamos uma ameaça comum que apenas poderemos derrotar em uma abordagem comum”, disse o diretor-geral da OMS. “A experiência nos conta que, mesmo quando as ferramentas estão disponíveis, elas não estão igualmente disponíveis para todos. Não podemos permitir que isso aconteça”, ressaltou.
“Continuaremos a mobilizar os países do G7 e G20 para que apoiem essa iniciativa. Espero que possamos reconciliar a China e os EUA em torno dessa iniciativa, porque se trata de dizer: ‘A luta contra a covid-19 é um bem humano comum, e não deveria haver divisões para ganhar essa batalha'”, acrescentou Macron.
O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, disse que acabar com a pandemia “exige o esforço de saúde pública mais maciço da história do mundo.” Segundo ele, “em um mundo interconectado, ninguém está seguro até que todos estejam seguros.”
Guterres afirmou ainda que todos os novos recursos que sejam desenvolvidos devem ser considerados “um bem público global essencial.” Para o diplomata, por muito tempo, o mundo teve falta de investimento em bens públicos globais, como ambiente limpo, segurança cibernética e paz. Agora, a pandemia “deixa uma lição essencial, a urgência de apoio a bens públicos globais e cobertura universal de saúde”.
Desde janeiro, a OMS trabalha com milhares de pesquisadores em todo o mundo para acelerar e acompanhar o desenvolvimento de vacinas. Também desenvolveu diagnósticos que estão sendo usados em muitos países e está coordenando um estudo global sobre a segurança e eficácia de quatro tratamentos diferentes.
Mais de 100 potenciais vacinas contra a Covid-19 estão sendo desenvolvidas em diversos países, sendo que seis delas já estão na fase de testes clínicos, afirmou Seth Berkley, presidente da Aliança Gavi. Ele defendeu que a capacidade de fabricação global seja ampliada antes da confirmação da criação de uma vacina.
“Será inexplicável e imperdoável dizer que uma vacina estaria disponível apenas no país onde foi desenvolvida ou onde as grandes farmacêuticas investiram”, defendeu Macron, uma das lideranças da iniciativa. “A partir do momento em que vencermos essa batalha, devemos fazer com que a vacina seja acessível a todas as populações, tão logo quanto possível e em toda parte”, apregoou o presidente francês.
Má vontade
O diretor-geral da OMS tinha dito na quarta, 22, esperar a reconsideração do governo dos Estados Unidos em relação à suspensão de seu financiamento à entidade. Na Casa Branca, porém, não há sinais de recuo. No mesmo dia, democratas da Câmara dos Deputados acusaram Trump de tentar fazer a OMS de “bode expiatório” para desviar a atenção do modo como está lidando com a pandemia de coronavírus.
Na quinta, 23, a China anunciou que contribuirá com US$ 30 milhões (R$ 167,7 milhões) adicionais à OMS para o combate à pandemia e para apoiar os sistemas de saúde de países pobres. “Apoiar a OMS em um momento crítico na luta global contra a pandemia é defender os ideais e princípios do multilateralismo e defender o status e a autoridade das Nações Unidas”, declarou Geng Shuang, porta-voz da diplomacia chinesa.
No mesmo dia, Bolsonaro atacou Tedros Ghebreyesus em live no Facebook: “Estou respondendo processo dentro e fora do Brasil e estou sendo acusado de genocídio por ter defendido uma tese diferente da OMS. O pessoal fala tanto da OMS, o diretor-presidente da OMS é médico? Não é médico, sabia disso?” Antes do ataque, ele já havia criado mal-estar com a manipulação de declarações de Tedros para justificar sua própria política, que vai na direção contrária às recomendações do órgão das Nações Unidas.
A OMS rebateu as críticas no encontro de sexta. O diretor de operações do órgão, Michael Ryan, usou a demissão de Luiz Henrique Mandetta para agradecê-lo por seus serviços, insistindo sobre a necessidade de que governos atuem com base em “evidências”. Já uma porta-voz da OMS apontou para a “forte experiência” do etíope em relação à saúde pública e arrematou: “Convido a consultar a biografia do Dr. Tedros”.
Chefe da OMS é biólogo
Ministro da Saúde da Etiópia entre 2005 e 2012, o chefe da OMS é formado em biologia. Tem mestrado em Imunologia de Doenças Infecciosas pela Universidade de Londres, doutorado em Filosofia (Saúde) pela Universidade de Nottingham e é considerado especialista em operações e liderança em respostas de emergência a epidemias.
Já na noite de segunda, 20, quando a ONU tentou ratificar em Assembleia Geral por videoconferência a iniciativa da OMS, Estados Unidos e Brasil se aliaram a mais 12 países para marcar a posição de não embargar a proposta, mas ao mesmo tempo se recusar a patrocinar a resolução. Num plenário de 193 estados-membros, a iniciativa foi aprovada por esmagadora maioria.
Quarta, 22, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, invadiu a madrugada defendendo numa postagem em seu blog pessoal a ideia de que a pandemia de Covid-19 “fez despertar novamente para o pesadelo comunista”, alegando que a OMS faz parte da conspiração.
Esses episódios têm servido para reforçar a impressão generalizada pelo mundo desenvolvido de que a diplomacia brasileira, antes referência histórica, está se tornando um caso de estupidez deliberada contra a vida.
Ruy Barbosa, diplomata maior da história brasileira, ferrenho direitista, nem por isso subjugou às convicções ideológicas sua mente visionária: “Hoje, com efeito, mais do que nunca, a vida assim moral como econômica das nações é cada vez mais internacional. Mais do que nunca, em nossos dias, os povos subsistem de sua reputação no exterior”. Que reputação restará ao Brasil, passada a pandemia?