À medida que a pandemia do coronavírus avança pelo país, trabalhadores de serviços essenciais pagam um preço alto pela exposição excessiva ao surto, a exemplo de limpeza urbana, segurança, assistência social, farmácia, supermercados, transporte público e, claro, saúde. Nos últimos meses, aumentaram as contaminações e mortes entre esses grupos mais vulneráveis ao vírus. Na área da saúde, o país ocupa o 4º lugar no ranking mundial de profissionais mortos em decorrência da doença, segundo levantamento da Anistia Internacional.
Em São Paulo, dados do Sindicato dos Motoristas e Trabalhadores em Transporte Rodoviário Urbano de São Paulo apontam que o número de óbitos entre motoristas e cobradores de ônibus subiu 42, 3% em menos de dois meses. O quadro é um reflexo da situação de caos institucional imposto pelo governo Bolsonaro, que decidiu abandonar trabalhadores de serviços essenciais à própria sorte.
Para se ter uma ideia, no início do mês, o governo revogou a norma que classificava a Covid-19 como doença de trabalho. Um dia depois de publicada, a Portaria nº 2.309 foi tornada sem efeito pelo Ministério da Saúde. Em reação à crueldade da medida, o PT apresentou projeto de decreto legislativo, o PDL 396/2020, para recolocar a Covid-19 na lista de doenças relacionadas ao trabalho.
“A decisão de Pazuello impede que o trabalhador comprove que pegou a doença em razão de sua atividade laboral e, com isso, faça jus aos benefícios previstos em lei”, reagiu o senador Humberto Costa, autor do projeto. “Na prática, o Ministério da Saúde proibiu que o trabalhador tenha acesso a direitos essenciais, especialmente aqueles que estão na linha de frente do combate à pandemia, como os do SUS”, disse o senador.
Segundo Costa, os trabalhadores expostos à contaminação necessitam dos mecanismos de proteção legal das doenças ocupacionais. “Esse contingente de trabalhadores, pelo imperativo de manter seus vínculos laborais e suas condições essenciais de vida, está cotidianamente exposto com maior amplitude ao risco de contaminação”, justificam os parlamentares que assinam o projeto. O texto é de autoria dos senadores Humberto Costa (PT-PE), Jacques Wagner (PT-BA), Jean Paul Prates (PT-RN), Paulo Paim (PT-RS), Paulo Rocha (PT-PA) e Zenaide Maia (Pros-RN).
Situação de abandono
Para especialistas, o quadro só não é mais grave graças ao olhar vigilante da sociedade civil e da resposta de Estados e municípios, cujos gestores tomaram as rédeas das ações de enfrentamento à pandemia, preenchendo parcialmente a lacuna deixada pelo governo federal.
“Embora as ações de solidariedade da sociedade civil estejam se mostrando fundamentais para evitar um caos ainda maior, o Estado é estratégico para evitar o aniquilamento dos brasileiros pobres e negros, seja pelo vírus ou pela fome. E não há Estado sem trabalhadores da linha de frente”, apontam, em artigo publicado no ‘El País’, a professora e pesquisadora Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL/UnB), Michele Fernández, a professora e pesquisadora de Administração Pública e Governança da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Gabriela Lotta, e o pesquisador do Centro de Estudos de Burocracia (NEB) e do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec), Giordano Magri.
Segundo os pesquisadores, o governo federal “provocou uma situação de abandono generalizado”. Na saúde e assistência social, a taxa de medo entre trabalhadores chega a 90%, apontam os especialistas. “Um medo que não é infundado: apenas 12% dos agentes penitenciários e 17% dos profissionais de assistência social receberam capacitação para enfrentar a crise”, relataram. Para os especialistas, “o Estado não apenas abandona seus trabalhadores. Ao fazer isso com os que estão na linha de frente, abandona toda a sociedade”.
Trabalhadores da saúde, os mais vulneráveis
O relatório da Anistia Internacional informa que mais de 7 mil trabalhadores da área de saúde já morreram no mundo. O Brasil aparece no ranking da agência com pelo menos 634 vítimas fatais por causa da doença, atrás do México (1.320), EUA (1.077) e Reino Unido (649).
“Exigimos dos governos que tomem medidas urgentes para proteger a vida dos trabalhadores da saúde”, cobrou a diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck, em depoimento ao portal da agência. “Além de aumentar a oferta de equipamentos de proteção, as autoridades públicas devem ouvir as queixas desses profissionais da saúde sobre suas condições de trabalho e devem respeitar seus direitos de se organizar”, alertou.
“O fato de mais de 7 mil pessoas terem morrido tentando salvar outras é uma crise em escala espantosa. Todo trabalhador da saúde tem o direito à segurança no trabalho, e é um escândalo que tantos deles estejam pagando o preço mais alto de todos”, disse Steve Cockburn, diretor de Justiça Econômica e Social da Anistia Internacional.
“Ao longo da pandemia, as pessoas ao redor do mundo vêm saudando trabalhadores da saúde como heróis. Mas esse reconhecimento soa vazio quando tantos trabalhadores estão morrendo por falta de proteção básica”, concluiu Jurema.
Mortes entre motoristas e cobradores
O Sindicato dos Motoristas e Trabalhadores em Transporte Rodoviário Urbano de São Paulo já registrou 74 mortes entre cobradores e motoristas de ônibus até 31 de agosto. Em junho, eram 35 vítimas fatais. “O fato é que, mesmo seguindo todos os protocolos de segurança, com o uso diário de máscara e álcool em gel, os condutores continuam sofrendo maior risco de contágio”, afirmou o sindicato ao ‘Agora São Paulo’, da ‘Folha de S. Paulo’.
A maior dificuldade, segundo a entidade, é causada pelas superlotações, consequência natural da retomada das atividades de vários setores. A fiscalização quanto ao uso de máscaras também é falha, o que fragiliza mesmo aqueles profissionais protegidos por equipamento individual.
Da Redação, com ‘Folha de S. Paulo’, ‘Anistia Internacional’ e ‘El País’