O presidente Jair Bolsonaro terá dificuldades para manter no Congresso Nacional seu veto à inclusão de dezenas de categorias de trabalhadores e trabalhadoras informais no programa de renda emergencial. Entre os prejudicados pela decisão de Bolsonaro, que a Central Única dos Trabalhadores (CUT) classificou de “perversa”, estão motoristas de aplicativos, garçons, manicures, pescadores artesanais, catadores de recicláveis, trabalhadores das artes, diaristas, babás e garimpeiros, entre outros trabalhadores.
A primeira categoria a se manifestar contra a decisão foi a dos trabalhadores rurais. O presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), Aristides Veras, avaliou que o impacto será imenso, especialmente para os agricultores familiares da região Nordeste. Segundos Aristides, eles estão entre os que mais precisam do auxílio emergencial, porque ainda não recebem o Bolsa Família, mas não conseguiram se cadastrar.
“Pelo censo do IBGE, de 2017, do ponto de vista de renda, seriam beneficiados 4 milhões de agricultores familiares, mas como há muitos cadastrados no Bolsa Família e no Cadastro Único, os atingidos diretamente pelo veto devem chegar a um milhão ”, estima o dirigente sindical. Ele adiantou que a Contag vai procurar deputados e senadores das frentes parlamentares do campo, dos estados e municípios para que derrubem o veto de Bolsonaro. “A tarefa é difícil, mas não desistiremos”, afirma.
Em nota oficial, a Contag afirma que o governo não apresentou razões técnicas consistentes para negar o benefício: “A Contag lamenta, profundamente, a falta de sensibilidade e de responsabilidade do presidente e da equipe econômica do governo federal com as categorias profissionais vetadas, principalmente com os agricultores e agricultoras familiares que ainda não foram beneficiados(as) por este benefício”.
Segundo a Contag, “a agricultura familiar é um serviço essencial, de produção de alimentos, e deveria ser tratado como um segmento estratégico a ser protegido neste momento de crise e de calamidade. Os agricultores e agricultoras familiares precisam permanecer na roça, em segurança, produzindo alimentos saudáveis para manter o abastecimento interno e alimentar todo o País”.
“O governo, ao vetar o direito de acesso ao auxílio emergencial para os agricultores e agricultoras familiares e para outras categorias profissionais, usou muito mais de suas conveniências políticas do que de argumentos técnicos. Falta ao governo, na verdade, sensibilidade para reconhecer o drama que milhões de pessoas estão enfrentando nesse momento de crise aguda que atinge todo o País”, conclui na nota a entidade, adiantando que não medirá esforços para derrubar o veto no Congresso. Para isso, será preciso garantir a maioria absoluta dos votos nas duas casas, de pelo menos 247 deputados e 41 senadores.
André Santos, técnico do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), revelou ao portal ‘Nexo’ que a inclusão das categorias profissionais no programa de renda emergencial foi avalizada por uma equipe do próprio governo federal em negociação com o relator do texto no Senado, Esperidião Amin (PP/SC). Mas Bolsonaro não manteve o acordo.
Na avaliação do técnico do Dieese, o veto não deve cair facilmente, porque há um entendimento do secretário-geral da Mesa do Congresso de que os vetos, nesse período de pandemia, não podem entrar em pauta em sessões remotas.
“O auxílio emergencial, que é um direito do povo, foi negado a milhões de trabalhadores. Ele alega não haver fontes de recursos para estender o benefício para pescadores artesanais, motoristas de aplicativos e outros. Balela! Essa crueldade é mais uma tentativa de forçar a saída do povo do isolamento. A crueldade desse ser não tem limites”
Parlamentares reagem com indignação
A reação inicial de boa parte dos parlamentares ao veto de Bolsonaro foi de indignação e perplexidade. Logo após a Lei 13.998/2020 ser publicada no Diário Oficial da União, na sexta (15), deputados e senadores foram às redes sociais protestar contra a decisão. Eles defendem a derrubada do veto e pedem que o Congresso Nacional delibere sobre o assunto o mais rapidamente possível.
Para o senador Humberto Costa (PT-PE), “o Congresso agiu rápido para resguardar aqueles trabalhadores que estavam sem qualquer lastro nesta grave crise. Jair Bolsonaro foi lá e empurrou todos eles para fora”.
O deputado Paulo Rocha (PT-PA) disse que Bolsonaro não governa para os brasileiros. “O auxílio emergencial, que é um direito do povo, foi negado a milhões de trabalhadores. Ele alega não haver fontes de recursos para estender o benefício para pescadores artesanais, motoristas de aplicativos e outros. Balela! Essa crueldade é mais uma tentativa de forçar a saída do povo do isolamento. A crueldade desse ser não tem limites”.
O presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH), senador Paulo Paim (PT-RS), disse que deputados e senadores devem analisar o veto o mais rapidamente possível. “Milhões dependem desse recurso para satisfazer as necessidades mais básicas e enfrentar a pandemia da covid-19”, disse no Twitter.
O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), autor do projeto original de ampliação do benefício, lamentou o fato de o presidente ter esperado o prazo final para sancionar a proposição. “Bolsonaro lava suas mãos em uma bacia de sangue! Quantos desses trabalhadores e quantas dessas famílias sofrerão, além da crise, com a fome e a falta de recursos? Covarde! Vamos lutar pela derrubada desses vetos!”, afirmou.
O relator da matéria na Câmara, Cezinha de Madureira (PSD-SP), se disse assustado com os vetos. “Esse veto nos preocupa porque onde fica a segurança com o líder do governo? O líder não tem autonomia para tocar as demandas, para fazer os acordos? Como ficam os próximos acordos? ”, questionou o deputado.
Até um aliado de primeira hora, o líder do PSL, senador Major Olímpio (SP), criticou o veto de Bolsonaro. “Irresponsabilidade, insensatez, vergonha ou que governo fez. A única coisa que o Congresso tem que fazer é derrubar esse veto parcial. É tirar essa vergonha nesse momento para que milhões de brasileiros possam sobreviver, se alimentar, levar o feijão com arroz para sua família”, afirmou em vídeo no Twitter.
Dificuldades e solidariedade no campo
O último Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) atesta que a agricultura familiar é a principal economia de 90% dos municípios brasileiros com menos de 20 mil habitantes, e responde pelo sustento de 40% da população economicamente ativa do país.
Os agricultores familiares, responsáveis por 70% da comida que chega à mesa dos brasileiros, criticam a falta de assistência do governo federal. Entre as dificuldades que enfrentam, estão a falta de uma rede de logística estruturada e o desmonte do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), um dos protagonistas da redução da fome no país nos últimos governos.
O pagamento de R$ 500 milhões para o PAA, por meio da Medida Provisória 957/2020, é considerado insuficiente para agricultores, cooperativas e movimentos do campo, que defendem a criação de um plano safra emergencial para garantir o sustento dos núcleos familiares. Outra garantia de renda às famílias, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), esbarra na falta de alternativas. Com as escolas fechadas, as compras para a alimentação dos estudantes foram drasticamente reduzidas.
Desde que foi adotado o estado de calamidade pública diante da pandemia do coronavírus, em 20 de março, entidades do campo multiplicam redes de solidariedade pelo país, e os alimentos produzidos pela agricultura familiar vem suprindo a fome das populações urbanas mais vulneráveis.
O coordenador do Coletivo Nacional de Abastecimento e Soberania Alimentar do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Leomárcio Araújo, disse ao portal ‘Brasil de Fato’ que as ações têm crescido. “Esse público do campo, na sua diversidade, tem demonstrado com ações bastante efetivas, com ações práticas e com a sua solidariedade, de levar o pouco que produz e colocar na mesa dessas famílias mais necessitadas das cidades, especialmente aquilo que é item básico na alimentação das famílias, como feijão, farinha e arroz”, explica.
MST alerta para aumento da pobreza
Kelly Maffort, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), expressa preocupação com o ingresso abrupto de tantas pessoas na faixa da extrema pobreza. “Nós temos dados que indicam que só durante os meses da pandemia, 500 milhões ingressaram na faixa da extrema da pobreza, somados aos já terríveis um milhão de pessoas que passavam fome, sede e não tinham acesso a água potável no mundo”, afirmou.
O que começou com duas iniciativas pontuais de distribuição de alimentos a pessoas em situação de rua no Maranhão e em Pernambuco tem agora pontos de ações em outros 17 estados, com doações de alimentos, leite e o programa Marmita Solidária. Somente por meio do MST, já foram distribuídas mais de 500 toneladas de alimentos nas periferias do país, onde 6,5% da população está na faixa da extrema pobreza, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Mazé Morais, secretária de mulheres da Contag, lembra que a garantia da produção no campo por parte do governo é fundamental para a continuidade das ações de solidariedade e o atendimento imediato à demanda das periferias urbanas. “Nós mulheres do campo e da floresta temos atuado construindo estratégias para garantir a segurança familiar, porque somos nós que produzimos nos quintais. Por isso ter acesso à terra, disponibilidade de crédito e acesso à assistência técnica é fundamental”, define Morais, que também é e coordenadora geral da Marcha das Margaridas, maior ação conjunta de mulheres trabalhadoras da América Latina.