O período entre a eleição de Lula e a interrupção do segundo mandato de Dilma pode ser compreendido como a última tentativa histórica de superação do subdesenvolvimento, que, por definição, ocorre sob condições permanentemente adversas dadas pela posição periférica na hierarquia capitalista.
A crise da experiência desenvolvimentista reabriu o debate econômico, sendo que a maioria dos argumentos elegeu a questão da produtividade como a causa central para o impedimento do lulismo. Mesmo entre alguns economistas heterodoxos, consolidou-se a ideia de que desequilíbrios estruturais foram gerados pela baixa intensidade do crescimento da produtividade em comparação à alta intensidade dos avanços sociais proporcionados pelas políticas públicas e pelo mercado de trabalho, levando a seu esgotamento.
Na miríade de posições, há uma perigosa concordância de que a saída deveria ser outro modelo voltado prioritariamente para avanços na produtividade, se necessário em detrimento (ou constrição) dos avanços sociais.
O problema desse “consenso produtivista” é que ele esconde uma economia política do desenvolvimento capitalista, cuja compreensão poderia esclarecer um pouco mais a surpreendente inflexão no Brasil após a quebra violenta do segundo mandato de Dilma. O debate sobre o modelo ideal para iniciar transformações estruturais a partir da acumulação (produtividade) deveria avançar nos temas da sustentabilidade do ciclo de transformações para além dos câmbios aparentes na renda, pobreza e desigualdade.
Em outras palavras, voltar a atenção para como se consolidam mudanças estruturais necessárias à definitiva “ruptura com o passado”, e não apenas no como iniciar estas mudanças. O problema é que insistir em mudanças estruturais leva necessariamente a desequilíbrios macroeconômicos, provocados por deslocamentos tectônicos no conflito distributivo. Infelizmente, a teoria econômica convencional é tediosamente repetitiva no receituário para a “estabilidade” do sistema, esta que, no caso do subdesenvolvimento, significa a estabilidade das desigualdades entre capital e trabalho. A tradição econômica prefere sacrificar a turbulência dinâmica proporcionada pelo crescimento em prol da estabilidade dos privilégios mantidos pelo atraso.
Vive-se, na economia, a permanente tensão entre persistir na prisão da história ou arriscar-se no abismo do desenvolvimento em busca da ruptura com o passado, este que, no Brasil, é definido pela origem colonial, pelas profundas desigualdades geradas com as instituições escravistas e pela incompetência industrial da classe capitalista residente; a prisão do passado reproduz, sob a falsa aparência da estabilidade macroeconômica, interesses arraigados no conservadorismo social, no cálculo rentista das decisões de gasto e na reprodução patrimonial da riqueza ultraconcentrada, impedindo fluxos distributivos de renda e a consolidação de uma sociedade predominantemente salarial. A macroeconomia, permeada pelo consenso produtivista, tende a estabilizar estes elementos pretéritos sem revelar que um verdadeiro impulso de transformação estrutural significa necessariamente alterar “privilégios” economicamente estabelecidos pelo subdesenvolvimento, cujo mecanismo de interação é representado pela distribuição funcional da renda em favor do trabalho.
A melhoria das condições de vida dentro do capitalismo depende necessariamente da construção de uma sociedade salarial. Apesar de o crescimento da produtividade ser indispensável à necessidade de expandir o excedente social de uma economia, por definição, subdesenvolvida, a simples presença da produtividade não garante redistribuição de recursos, pelo contrário, reforça desigualdades estruturais. Somente quando há redistribuição estrutural de renda, portanto alguma homogeneização social, é que se pode afirmar a existência de um processo civilizatório de desenvolvimento capitalista. O comando civilizatório da redistribuição é fundamentalmente dado pela dinâmica do mercado de trabalho e das políticas públicas, subordinando a dinâmica da produtividade, e não o contrário.
O lugar em que as águas do Estado e do emprego encontram-se em um processo de transformações estruturais está dado pela variável salários/PIB, ou seja, o quanto do excedente produzido pela sociedade é apropriado pela parcela majoritária desta, pelos trabalhadores. Compreender a resiliência das sociedades em persistir nos abismos do desenvolvimento, evitando retornar à prisão da história, ou seja, à normalidade conjuntural reproduzida pelo passado é um dos grandes desafios de interpretação que se colocam para a economia brasileira contemporânea.
No caso brasileiro, é o comportamento do salário mínimo a variável mais importante para dimensionar a intensidade desse processo, por este funcionar como farol sinalizador de todas as rendas do trabalho e, portanto, indutor de ciclos de redistribuição de renda em favor do poder de compra do trabalho em si mesmo e em relação ao peso do capital. O gráfico abaixo, em perspectiva histórica, mostra a interdependência entre o salário mínimo e a relação salários/PIB, especialmente nos períodos em que houve uma política consistente de valorização do primeiro.
O tema da resiliência aparece na análise do gráfico, e mostra como a sociedade brasileira é extremamente avessa a mudanças estruturais. Dois momentos de combinação entre as forças do trabalho e as políticas públicas foram o período democrático da Era Trabalhista, especialmente entre 1951 e o começo de 1964, e os Governos Lula e Dilma da Nova República (2003-2016). São dois tempos em que o Brasil arriscou-se no abismo do desenvolvimento numa tentativa de transformação estrutural de sua economia; períodos curtos de um pouco mais de uma década que foram prosseguidos por longos de estabilidade ou retrocesso do conflito distributivo. Pouco mais de uma década de trabalhismo democrático gerou as condições do Golpe Militar; pouco mais de uma década de lulismo gerou as condições para o Golpe Parlamentar de 2016. Em ambos os casos a economia política explica melhor que a macroeconomia: era preciso reverter os ganhos da classe trabalhadora sobre a apropriação do excedente social. Ambos se encerraram de maneira violenta e abriram espaço para uma longa hibernação de direitos fundamentais e de outros processos civilizatórios.
A taxa de salários sobre o PIB nunca tornou-se majoritária no Brasil. Essa relação de forças têm-se reduzido em todos os países do mundo desde a década de 1970, mas ainda hoje os países civilizados mantêm seu excedente social majoritariamente distribuído para os trabalhadores, como exemplos de Coreia do Sul (51,2%), Austrália (51,8%), Japão (52,3%), Estados Unidos (55,4%) e o mais desenvolvido de todos desse ponto de vista, a Dinamarca (68,3%), segundo os dados da OCDE para o ano de 2009. O Brasil fez um curto salto de 4,24 pontos percentuais em 13 anos de lulismo, recuperando apenas uma parte do que foi perdido desde o Golpe de 1964, e ainda assim o consenso da macroeconomia insiste nas deficiências produtivistas do modelo em aceitar distribuições favoráveis ao trabalho.
Observando a experiência histórica do Brasil em relação ao mundo desenvolvido, tem-se claro que não há nada essencialmente impeditivo em avançar na distribuição funcional da renda em favor do trabalho, e isso necessariamente implica permitir crescimento dos salários acima do crescimento da produtividade. O que impediu o avanço do modelo está mais relacionado à falta de resiliência social em conviver com mudanças estruturais do que a ausência, em si de mudanças estruturais. É a prisão da História chamando a todos para retirar-se do abismo do Desenvolvimento que, se triunfar sobre as aspirações democráticas do país, vai determinar mais um ciclo longo de mediocridade civilizatória no Brasil que segue.
André Calixtre, mestre em economia social do trabalho e doutorando em história econômica, ambos pelo programa de Desenvolvimento Econômico do Instituto de Economia da Unicamp, para o Portal Carta Maior