Um dos aspectos que levaram Jair Bolsonaro (PSL) a ser eleito como novo presidente do Brasil foi ter se apresentado como o candidato antissistema, embora travestido por elementos fascistas presentes em seus discursos de ódio. A avaliação é do cientista político, professor e jornalista André Singer. Em meio a um terreno agora desconhecido, ele argumenta que a candidatura de Bolsonaro não faz parte da rotineira alternância que caracteriza a democracia.
“O próximo período é muito indeterminado. Diante do que foi a campanha de Bolsonaro, ninguém sabe o que ele vai fazer. Uma campanha muito distinta de todas as outras, em que a televisão e a estrutura partidária pesaram pouco. Ele teve um discurso em que conseguiu se colocar na posição de alguém que representava uma alternativa antissistêmica, embora a gente saiba que ele é um candidato conservador. Mas não sabemos o que ele vai fazer e, portanto, não sabemos também qual vai ter que ser o comportamento da oposição”, analisa Singer, em entrevista ao Brasil de Fato.
Autor de “Por que gritamos Golpe? – Para entender o impeachment e a crise política no Brasil”, o cientista político descreve a trajetória da onda conservadora no país, que, segundo ele, se iniciou em 2013 e reflete os votos majoritários a Bolsonaro por parte dos setores de maior renda.
Singer define ainda as mobilizações da campanha #ViraVoto como principal elemento dessas eleições e comenta sobre o papel da resistência para os próximos anos. “No final da eleição, houve um movimento em favor da democracia, que tomou conta de setores importantes da sociedade, e fez a diferença entre Bolsonaro e Fernando Haddad (PT) diminuir de 18 para 10 pontos percentuais. É muita coisa em pouco tempo e em condições bastante adversas. Esse é o movimento vivo da sociedade em favor da democracia, o que faz com que as condições para uma frente democrática estejam mais dadas do que nunca”, afirma Singer.
Confira a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato – Bolsonaro teve uma vitória em grande parte do país, exceto no Nordeste. Foram votações expressivas também em cidades com maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de todo o Brasil. É uma configuração diferente das eleições passadas, onde nós víamos um país mais dividido?
André Singer – Eu diria que nem tanto, porque na realidade se pegarmos por fatia de renda, se percebe que eleitores mais pobres ficaram do lado do candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), do lulismo, e o que houve foi uma alteração dos segmentos intermediários.
Na minha opinião, isso é explicado pelo fato de que o lulismo tem uma base no que eu denomino “subproletariado”, são os eleitores com até dois salários mínimos de renda familiar mensal. Esses eleitores, que são o principal núcleo lulista, permaneceram fiéis. O que acontece é que eles estão mais localizados no Nordeste, em particular no interior. Então existe uma espécie de coincidência do social com o geográfico.
Acho que isso está claro desde que escrevi “Os sentidos do lulismo”, de que o coração do lulismo é o Nordeste. O coração ficou. O que houve foi uma oscilação que é relativamente normal, sem considerar a singularidade dessa eleição. Essa oscilação tem que existir em uma democracia, porque se não tiver esse balanço, não tem alternância de poder e, se não tem alternância de poder, não tem democracia.
Nesta eleição, em particular, temos um problema: o candidato que ganhou fez muitas declarações antidemocráticas. Isso é um problema. Mas o processo em si foi um processo de eleição democrática, no qual o que aconteceu foi que esses setores intermediários, inclusive setores da classe trabalhadora, oscilaram em direção ao candidato de extrema direita. Mas o candidato do PT conseguiu preservar seu núcleo principal de apoio, que são os mais pobres. 02:24
Apesar de ter se mantido nessas áreas mais pobres, vemos um número expressivo de votações contrárias ao PT. Você acha que isso é fruto de uma onda conservadora ou de uma busca por mudança que foi visionada em Bolsonaro?
Na verdade, tem as duas coisas. Existe uma onda conservadora que, sobretudo, pegou a classe média tradicional. Essa onda começa em 2013, se aprofunda em 2014, e caminha para seu auge a partir de 2015, se refletindo na grande votação do candidato Bolsonaro nos setores de maior renda.
Se gestou uma radicalização à direita de setores da classe média que originalmente estavam com o PSDB, que preferiam um projeto neoliberal para o Brasil, mas que até recentemente estavam aceitando o jogo democrático. A partir de 2013, temos um processo novo no qual isso vai adquirindo uma coloração distinta e aspectos antidemocráticos dos quais vamos ter que nos ocupar muito no próximo período.
Do outro lado, quando se fala da votação de camadas populares em Jair Bolsonaro, aí acho que existe uma necessidade de mudança e uma espécie de aposta que Bolsonaro poderia ser a mudança. Acho que é muito diferente o sentido do voto quando compara esse voto da classe média tradicional e o da classe trabalhadora.
Dentro do autoritarismo de Bolsonaro existiu algo que podemos até chamar de fascismo devido a uma série de preconceitos que pareciam estar escondidos e vieram à tona após o posicionamento dele?
Eu diria que sim, preferiria falar em elementos fascistas. O conceito de fascismo se refere mais ao que aconteceu nos anos 1930, na Europa. Um historiador me dizia recentemente que o fenômeno fascista na Europa é uma reação a um grande movimento de ascensão das classes trabalhadoras que tinham, em certo momento, uma opção revolucionária.
Não existe isso aqui. O lulismo é uma opção de conciliação. Foi inventado um fantasma anticomunista para uma realidade onde não existe. Apesar disso, acho que podemos, sim, enxergar elementos fascistas como, por exemplo, a apologia da força, da violência, isso tem uma conotação de natureza fascista. Prefiro tratar, neste momento ainda, como elementos, não como uma descrição plena de um movimento fascista.
Apesar do discurso antipetista, embasado em uma série de fake news, além da ideia de que o PT seria uma organização criminosa, o partido tem a maior bancada da Câmara, com 56 deputados, e também quatro governadores, sendo o partido com maior número de governadores do Brasil. O PT continua vivo?
O PT sobreviveu. Até tem uma ironia, com o PSDB. Se entendemos que a Lava Jato foi dotada de uma seletividade que apontava na direção do PT e do ex-presidente Lula — como ficou claro naquele famoso power point —, o PSDB acabou mais machucado na eleição do que o próprio PT. Não sou daqueles que acham que o PSDB acabou, acho que foram derrotados na eleição nacional, mas isso faz parte da história dos partidos.
Voltando ao caso do PT, sim, acho que sai como um partido importante que tem condição de disputar a liderança do campo popular que, em certa medida, ele hegemonizou durante um bom tempo. Agora, também é necessário considerar, em um balanço mais de longo prazo, que há questões que o PT deveria rever. Em cidades ou regiões mais desenvolvidas do país se expressou em camadas populares uma certa rejeição ao país que o partido tem que enfrentar para reconstruir uma maioria.
Você acha que Fernando Haddad significaria a continuação da hegemonização do PT no campo da esquerda?
Creio que Haddad se saiu muito bem da eleição, se mostrou uma liderança capaz em uma situação muito difícil que é substituir o ex-presidente Lula, uma figura emblemática e com uma trajetória muito consistente. Em poucos dias, Haddad se mostrou à altura do desafio, que era muito grande. Então acho que sim, ele sai com uma condição de ter uma palavra de liderança no próximo período.
Como vai ser o próximo período é muito indeterminado. Estamos agora em um terreno desconhecido. Diante do que foi a campanha de Bolsonaro, ninguém sabe o que ele vai fazer. Uma campanha muito distinta de todas as outras, em que a televisão e a estrutura partidária pesaram pouco. E não sabemos exatamente quais os compromissos dele e o que ele vai fazer.
Ele teve um discurso e conseguiu se colocar na posição de alguém que representava uma alternativa antissistêmica, embora a gente saiba que ele é um candidato conservador. Mas não sabemos o que ele vai fazer e, portanto, não sabemos também qual vai ter que ser o comportamento da oposição.
Você chegou a falar agora pouco sobre algumas camadas que o PT deveria repensar e que não chegou a fazer. Uma delas seria os evangélicos?
Acredito que sim. Eu acho que tem questões que o PT terá que rever, por exemplo, o problema da segurança. É uma questão que se tornou um item prioritário da agenda nacional. A questão moral influencia, em alguma medida, o voto evangélico também, então vai ser preciso construir um diálogo, uma agenda de compreensão mútua em relação a determinadas camadas sociais, que talvez tenham se tornado excessivamente arredias a um partido que tem vocação majoritária.
Mas também para não fugir de problemas delicados, é importante o contato com a periferia, que foi objeto, por exemplo, da manifestação do Mano Brown, no Rio. Quer dizer, há talvez uma certa dissociação entre um partido que se tornou excessivamente eleitoral e um partido que se tornou excessivamente de Estado, institucionalizado para assim dizer, e que acabou perdendo uma permeabilidade com a qual justamente ele nasceu, que era sua marca de origem.
Qual é o papel do ex-presidente Lula a partir de agora?
Bem, o presidente Lula mostrou uma resiliência surpreendente porque ele foi processado, condenado e preso e, mesmo assim, conseguiu se manter no comando não só do partido, mas eu diria até do próprio campo popular, a ponto de colocar o seu candidato no segundo turno e contribuir, sobretudo, com os votos do Nordeste para que esse candidato chegasse a ter 45% dos votos válidos.
Só que agora nós estamos novamente diante de uma incógnita: o que vai significar essa nova situação com um governo de extrema direita? Eu temo que haja uma tendência autoritária que pode vir a complicar um pouco o jogo tal como ele se deu até agora e a dificultar o exercício da liderança pelo ex-presidente Lula.
Repito: a eleição acabou de acontecer, então qualquer prognóstico é muito arriscado, mas, diante do teor da campanha, precisamos levar em consideração que pode haver um endurecimento no próximo período.
A esquerda tentou avançar com uma frente ampla contra o fascismo, mas ela esbarrou em alguns problemas. O que não deixou ela ser concretizada?
Essa é uma questão muito interessante e importante. Eu acho que existe uma trava que está na própria natureza dos partidos em sociedades como a brasileira. Eu diria que os partidos, apesar de terem se desenvolvido no Brasil, continuam sendo excessivamente personalistas. E, por serem personalistas, eles não funcionam muito como entidades coletivas e mais como plataformas para determinadas lideranças.
Isso significa que é muito difícil de se formar organismos coletivos que subordinem as aspirações individuais — que são legítimas e também fazem parte da política — àquilo que seria o desígnio de um organismo que estaria acima de tudo isso. Eu fico com a impressão de que é mais difícil formar uma frente no Brasil do que no Uruguai, no Chile, onde a sociedade em si é mais organizada. Isso tem até a ver com a formação de classes do país etc.
Um desses casos seria o Ciro Gomes, do PDT, que teve uma votação expressiva no primeiro turno e, no segundo, onde todos esperavam uma posição mais enfática contra Jair Bolsonaro e a favor do Partido dos Trabalhadores, acabou se isentando dos palanques?
Eu acho que sim, é um bom exemplo. É preciso situarmos o caso do Ciro porque, de um lado, esse comportamento que ele teve no segundo turno foi muito ruim para ele e para o processo democrático, porque ele se ausentou em um momento histórico crucial e isso, a meu ver, terá muitos reflexos negativos para o futuro dele.
Mas, além disso, isso mostra como a política gira muito em torno dessas lideranças. Ele, compreensivelmente, se sentiu muito afetado por não ter conseguido a aliança com o PSB, que teria sido uma plataforma para ir ao segundo turno. Eu acho que ele não perdoou o fato de que o PT obstaculizou essa aliança. E, de fato, isso aconteceu.
Então eu acho que o Ciro Gomes é, de fato, um caso emblemático dessa estrutura pouco coletiva dos partidos, mas precisamos dividir um pouco as responsabilidades, porque não seria justo só atribuir a ele.
Nós tivemos, por outro lado, uma grande mobilização, principalmente na reta final da campanha, de artistas, celebridades e a população em geral se dispondo a conversar com as pessoas em uma campanha que eles chegaram a chamar de #ViraVoto. Esse caldo de pessoas que se mobilizaram em torno de uma ideia e contra outra, é um caldo que a esquerda pode capitalizar daqui para frente?
Eu diria que esse é, talvez, o elemento principal desta eleição. No final dela, houve um movimento em favor da democracia, que tomou conta de setores importantes da sociedade e fez a diferença entre Bolsonaro e Haddad diminuir de 18 para 10 pontos percentuais. É muita coisa em pouco tempo e em condições bastante adversas.
Esse é o movimento vivo da sociedade em favor da democracia, o que faz com que as condições para uma frente democrática estejam mais dadas do que nunca. É quase que natural agora que essa frente se forme para tentar resistir ao que parece um impulso autoritário e que vem em um primeiro momento com um certo apoio eleitoral e popular, portanto é algo que não se deve negligenciar. Se essa frente vai conseguir arrastar com ela os partidos, eu diria que é um dos principais problemas do próximo período.
Nós tivemos também votações expressivas em três grandes estados (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) em candidatos diretamente aliados com Bolsonaro. O que isso representa para a atuação da esquerda regionalmente?
Eu acho que representa o fato de que o Bolsonaro chega com força. Em um primeiro momento, ele vem com mais força do que teve Fernando Collor em 1989, que é o caso mais próximo que eu consigo encontrar como referência. Antes dele, eu diria Jânio Quadros.
Então foi uma virada impressionante no final do primeiro turno, uma onda muito forte. Eu acho que aí tem uma questão que vai permanecer, que é saber até que ponto o financiamento ilegal de mensagens pelo WhatsApp por parte de empresas não pode ter constituído uma fraude propriamente, porque, na realidade, essa virada que acabou levando Doria, Witzel e Zema ao governo desses três estados do Sudeste se deu em praticamente três dias.
É um fenômeno raras vezes visto. Tem candidatos que saíram de um patamar muito baixo, quase desconhecidos pela opinião pública nacional, e se tornaram governadores. Então acho que o tamanho da onda é grande. Agora, eleição também é um pouco isso, como dizia o cientista político Adam Przeworski: é o reino da incerteza. Ela precisa acontecer porque, do contrário, não seria democracia.
O Paulo Guedes já sinalizou a necessidade de reformas estruturais, Previdência, tributária etc., que devem ser feitas, segundo ele, nesse primeiro período do governo. Antes, nós tivemos também uma série de reformas que foram, senão impedidas, dificultadas pela classe trabalhadora, tentativas de mobilização e pelo sindicalismo. O que será daqui em diante do sindicalismo?
Sem dúvida, os sindicatos, tal como os partidos que eu mencionei antes, continuarão, continuam. Mas, não há dúvida que é um período difícil, porque nós temos uma reforma trabalhista, uma série de questões relativas ao financiamento dos sindicatos e porque nós estamos vivendo, desde 2015, um período de retrocessos, como a própria reforma trabalhista e o Teto de Gastos, que representam voltas enormes atrás.
E não será fácil conter essa onda, então eu reconheço que a perspectiva com relação à reforma da Previdência não é positiva, porém nós temos que olhar para o fato de que essa frente democrática, provavelmente, será também uma frente de resistência a essas reformas. Aí eu acho que depende muito de como que o conjunto das forças que estão se opondo a esse projeto que venceu venham a atuar.
Nós temos que considerar que, se o governo Bolsonaro não der respostas econômicas bem rápidas, eu desconfio que haverá uma perda de popularidade, porque a situação econômica é muito ruim e as camadas populares, que estão sofrendo muito, precisam de uma reativação da economia, de emprego e renda. Então nós vamos ter que observar com muito cuidado e isso pode representar mudanças no cenário.
Aproveitando o que você comentou da necessidade de que a normalidade econômica aconteça já nesse primeiro período, existem algumas análises de que Henrique Meirelles teria dito que se o Paulo Guedes não batesse ponto no Ministério, ainda assim o Brasil cresceria 2%. Eu ouvi também de analistas que o Brasil precisa entrar no hall de investimentos estrangeiro. Como você acha que a campanha de Bolsonaro se liga com os estrangeiros que querem investir no Brasil?
Eu tenho a impressão, como cientista político, que não haverá retomada do crescimento sem investimento público. Mas acho que nós precisamos estar abertos a todas as possibilidades. Se houver uma enxurrada de investimentos estrangeiros, um grande aporte, pode ser que se consiga alguma coisa inesperada.
Em um primeiro momento, se não for reaberta a perspectiva de investimento público — e com a lei de Teto de Gastos isso não vai acontecer –, eu não vejo uma retomada do crescimento. E 2% é muito pouco para o Brasil, 2% de crescimento do PIB não é suficiente. O Brasil tem que crescer entre 4% e 5% para estar em uma condição de dar perspectivas para o trabalhador.
Não estou nem mencionando taxas chinesas, que seriam, sim, criar as condições para uma transformação mais rápida. Eu estou falando só de descomprimir e abrir os canais de melhora, que foram, por exemplo, obra do lulismo. Um dos grandes triunfos do lulismo foi ter conseguido manter um crescimento entre 4% e 5% durante alguns anos e isso produziu uma ascensão de dezenas de milhões de pessoas.
Você acha que houve muita interferência e impulsionamento de empresas estrangeiras nessa eleição de Bolsonaro? Isso estaria ligado a necessidade do investimento estrangeiro?
Eu não sou capaz de afirmar, não tenho os dados suficientes para fazer uma análise desse aspecto mais publicitário da campanha. Ouço falar dessas novas técnicas, da possível influência do Steven Benon na campanha — apesar de ele negar que tenha estado diretamente envolvido. O que eu consigo enxergar é esse incrível crescimento — que passou despercebido — uma semana antes do primeiro turno. Fico impressionado que, pela imprensa, dez dias antes do primeiro turno, todo mundo achava que o Bolsonaro perderia no segundo turno, porque até havia uma convicção de analistas e também das campanhas de que ele era o melhor adversário para qualquer outro, porque iria perder.
De repente, isso se inverteu, de uma hora para outra. Eu acho plausível a explicação de que isso tenha acontecido porque alguém manipulou as redes de WhatsApp mandando informações que não eram perceptíveis ou que não passavam pelo chamado espaço público ou pelo espaço do debate público, como o programa eleitoral e os debates aos quais o candidato Bolsonaro não foi. Ou seja, são formas de comunicação política passando por redes privadas e não públicas.