Somos muito paroquiais. Enquanto uma tempestade sem precedentes históricos se faz anunciar sobre a humanidade, o Brasil se esgarça ao assistir um juizinho de província determinando, no melhor estilo dos anos de chumbo do século passado, a prisão clandestina do irmão daquele que a direita falso moralista elegeu como seu inimigo público número um, José Dirceu.
O tal Sérgio Moro de sempre não esperou e, mal adveio a confirmação do encerramento da segunda instância, fez prender Luiz Eduardo Silva, sem qualquer aviso prévio a sua defesa. Tomou conspirativamente todas as medidas para que seu teatro de exposição do imputado se desenrolasse sem quaisquer contratempos a lhe tisnarem sua lúgubre estética. De baraço e pregão pelas ruas da vila, foi exibido perante toda a mídia o troféu do juiz populista.
Trata-se, afinal, do irmão de José Dirceu e isso justifica tudo, para regozijo da fascistada tupiniquim.
O que não interessou ao verdugo togado é que Luiz Eduardo é réu primário, de residência e profissão certas, pessoa dedicada a sua família e que nunca embaraçou a jurisdição penal contra si, comparecendo a todos os atos processuais e sempre que chamado. Um caso típico de ausência de qualquer motivo para a prisão preventiva.
Vamos por etapas. O STF, com estreita maioria, decidiu, em fevereiro de 2016, que, encerrada a instância de apreciação dos fatos e não havendo mais recursos com efeito suspensivo à disposição do acusado, pode – e não deve – se iniciar a execução da pena, ainda que em caráter provisório. O debate sobre a execução provisória da pena tem passado ao longo da atenção para com esse verbo – pode – do julgado do STF e tem distorcido seu significado. O que a corte suprema tratou foi de uma faculdade do julgador no contexto concreto do caso em exame. Cuidava-se de um habeas corpus, sem qualquer efeito geral.
Mas, lá no sul, o tribunal dos amigos de Sérgio Moro resolveu, num golpe de mágica, transformar aquilo que era uma faculdade em dever, como se a prisão, sem qualquer apego à letra da Constituição e da lei, fosse uma consequência inarredável da condenação provisória. E, para não deixar dúvida sobre suas más intenções, ainda baixou súmula nesse sentido, fazendo a festa do ministério público infestado de concurseiros ferrabrás.
Voltamos, assim, aos tempos em que recolher-se à prisão era condição para recorrer da sentença condenatória. A reforma do Código de Processo Penal de 2008, que, em respeito ao princípio da presunção de inocência, aboliu essa regra, passou longe dos verdugos togados. Passaram batidos.
A faculdade outorgada pela lei a um agente público, porém, nunca é um espaço de arbítrio. Ao dela fazer uso, o juiz deve motivar sua decisão, ainda mais quando se trata de restringir direito do jurisdicionado. O espaço para motivação da prisão antes do trânsito em julgado é muito estreito. Quando é que cabe? Obviamente só quando couber cautela processual, isto é, quando a liberdade do acusado puder ser um risco ao desempenho da jurisdição penal (risco de fuga, por exemplo) ou à ordem pública (risco de reincidência na prática de crime).
No mais, não pode ser antecipada a pena, porque não definitiva a culpa do apenado. Em outras palavras: a famigerada decisão do STF não mudou nada. Como dantes no Castelo de Abrantes, só é permitida a prisão do condenado em qualquer grau, antes do trânsito em julgado, se incorrer numa das hipóteses do art. 312 do Código de Processo Penal (prisão preventiva).
É evidentemente proibida a decretação da prisão só para atender à concupiscência dos que se regozijam com a desgraça alheia. O direito penal não é um espaço para as Salomés da vida dançarem com a cabeça de São João Batista em bandeja de prata.
No campo puramente ideológico, justifica-se a jurisdição penal como atividade estatal necessária para pacificar conflitos advindos da grave lesão a bens jurídicos. O estado, para afastar a arenga entre o criminoso e sua vítima, toma para si a dor dest‘última e a “neutraliza”, na linguagem no professor frankfurtiano Winfried Hassemer. A vítima, ainda que não seja indiferente ao estado-jurisdição, tem um papel marginal na persecução penal, precisamente porque pode ser potencialmente, na sua ânsia de revidar o crime, tão violenta quanto seu autor.
A neutralização da vítima exige que o estado se afaste de qualquer jogo de satisfação com a punição. Punir é, em nossos dias, na linguagem de Michel Foucault, uma atividade envergonhada, praticada entre as quatro paredes das penitenciárias, longe da curiosidade pública. É fundamental que a pena cumpra seu papel reintegrador e, para tanto, não pode se converter num teatro para alegrar, com a humilhação do apenado, terceiros tarados pela dor do outro.
O juiz que joga para a plateia desmerece a jurisdição, a apequena. A aplicação da lei penal não é uma luta de gladiadores, do bem contra o mal, até porque, ao se exasperar a função punitiva do estado, basta a qualquer um estar no lugar errado, na hora errada, para ser engolido por essa máquina de triturar existências, em que se transforma o direito penal na prática.
O Sr. Sérgio Moro deve ter um problema de formação acadêmica. Não entendeu, até hoje, seu papel. Prefere ver-se no lugar de um Datena, a honrar sua toga. Faz do exercício de sua magistratura um papel de apresentador de reality show de mau gosto e, claro, de escancarada seletividade partidária. Usa a função para satisfazer o sentimento de vingança política dos inconformados com os governos populares de Lula e Dilma. No direito penal, essa atitude tem nome: chama-se prevaricação.
Enquanto isso, o mundo se transforma rapidamente diante de nossos olhos, redistribuindo as cartas do jogo estratégico global. As firulas de Moro e seus amigos com o direito penal mais parecem uma briguinha pelas cadeiras espreguiçadeiras no convés de um Titanic a afundar. Estamos nos perdendo em discussões rasas de princípios que se pensava já há muito estabelecidos no atual estágio de evolução civilizatória enquanto fechamos nossa indústria de construção civil e naval, jogamos as instituições da governança democrática no ralo das disputas políticas e entregamos nossos ativos a potências estrangeiras. Não temos capacidade de ver que estamos afundando em plena tormenta da reordenação econômica global, condenando nossos filhos a viverem num estado falido.
Encontramo-nos na contingência de perder o bonde da história numa sociedade dividida por conta do mau comportamento de alguns de seus atores, que, ao invés de cumprirem sua função constitucional de pacificar, põem lenha na fogueira dos conflitos políticos por pura vaidade, espírito corporativo e incompreensão primária de suas funções no estado.
Querem-se respeitados e temidos, sem dar nada em troca à sociedade. Sugam-na, isto sim, com acúmulo de vantagens e prerrogativas, em total disparidade com a situação da maior parte dos brasileiros que pagam suas sinecuras. E se acham lindos e imprescindíveis. É. Tem razão a Senhora Presidenta do STF, Ministra Carmen Lúcia, estamos todos fartos desse judiciário disfuncional, usurpador e entreguista.
Eugênio Aragão é ex-ministro da Justiça