Enquanto Jair Bolsonaro abre as portas do Brasil para a entrega do sistema elétrico via Medida Provisória (MP) nº 1.031/21, que autoriza a venda da Eletrobras, o presidente da Argentina, Alberto Fernández, revogou as privatizações de empresas de energia e centrais térmicas promovidas pelo antecessor, Mauricio Macri (2015-2019).
Considerado um gesto de afirmação da soberania nacional, no momento em que o país se debate com a dívida milionária (US$ 200 bilhões) contraída em quatro anos de governo Macri, o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) 389/2021 foi assinado no último dia 16 por Fernández e grande parte do gabinete.
O ato barrou a entrega ao setor privado de patrimônios públicos estratégicos como Dioxitek (produtora de insumos medicinais e energia nuclear), Transener e as termelétricas Manuel Belgran e San Martín (Timbúes), que a aliança de direita Vamos Mudar tentou implementar. Alguns desses processos se encontram sob investigação da Justiça argentina.
O jornal argentino Cronista Comercial informou que as Centrais Elétricas Manuel Belgrano e Timbúes geram receitas de mais de 850 milhões de pesos (US$ 2 milhões) por mês. Parte desses recursos deveriam ser destinados à obra de uma termelétrica.
O decreto do governo argentino recuperou ainda a gestão da Integración Energética Argentina (ILEASA e ENARSA) na importação de gás da Bolívia. E apresentou garantias do Tesouro Nacional para a aquisição de gás natural da Bolívia, que Macri havia suspenso para afetar o então presidente Evo Morales.
Ao contrário de Fernández, Bolsonaro deve sancionar a qualquer momento a MP 1.031, aprovada nesta segunda-feira (21) em segunda votação na Câmara dos Deputados. A medida, que elevará as contas de luz em até 25%, foi votada em sessão extraordinária da Câmara, pois a vigência se encerraria na terça (22). Se caducasse, outra medida provisória sobre o assunto só poderia ser apresentada em 2022.
Luta contra o desmonte continua
A Eletrobrás é uma das peças-chave do programa de privatizações capitaneado pelo ministro-banqueiro da Economia, Paulo Guedes. O desmonte da estatal precede a entrega à iniciativa privada e vem ocorrendo a passos largos em 2021.
A tramitação da proposta ocorreu de maneira célere. Bolsonaro foi pessoalmente ao Congresso Nacional entregar o texto, em 23 de fevereiro. No início de abril, ele publicou decreto já incluindo a Eletrobras no Plano Nacional de Desestatização (PND).
No fim daquele mês, integrantes da Bancada do PT na Câmara dos Deputados protocolaram representação junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) apontando as irregularidades na MP. Entre elas, as ausências de autorização legislativa e de necessidade e conveniência para a privatização da estatal.
Um dia após a votação no Congresso, dirigentes de federações, confederações e sindicatos dos urbanitários se reuniram em videoconferência com técnicos do TCU, onde a categoria protocolou denúncia sobre a inconstitucionalidade da MP do apagão. Segundo a Associação de Empregados da Eletrobras (Aeel), a proposta fere dez artigos da Constituição Federal. A presidente do TCU, ministra Ana Arraes, designou uma equipe técnica para analisar a denúncia.
Parlamentares de oposição vão recorrer à Justiça para barrar a MP. O líder da oposição, Alessandro Molon (PSB/RJ), deve apresentar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ao Supremo Tribunal Federal (STF) para questionar a proposta. Diversos partidos da oposição, como o PT, PSB, PCdoB, PSOL, Rede e PDT, devem assinar o documento.
O líder do PT na Câmara, Elvino Bohn Gass (RS), defendeu a revogação da medida num futuro governo de oposição que substituirá o desastre bolsonarista. “Nenhum país do mundo se desfaz de estruturas como a Eletrobras, entrega de mão beijada a outros países e joga todo o aumento da conta de luz para os consumidores”, disse na sessão da segunda-feira.
A presidenta nacional do PT, deputada federal Gleisi Hoffmann (PR), protocolou na terça-feira (22) um projeto de decreto legislativo que autoriza a realização de um referendo para a população brasileira deliberar sobre a venda da Eletrobras. Para Gleisi, “um fato tão relevante para a vida de milhões de brasileiros não deve ser decidido à revelia da opinião de nossa população”.
“A Eletrobras vale cerca de R$ 370 bilhões, além do valor de sua marca no mercado, e o governo quer arrecadar apenas R$ 25 bilhões com a sua venda, ou seja, menos do que o seu lucro acumulado nos últimos três anos”, denuncia a presidenta do PT.
“Sem obrigação de investir e com possibilidade de obter altíssimos dividendos vendendo energia mais cara, o resultado será certamente o enriquecimento dos acionistas e a diminuição dos investimentos na segurança energética, o que elevará o risco de apagões no país, como vimos acontecer recentemente no Amapá”, sublinha Gleisi.
Países importantes recuaram com privatizações
Ao recuperar para o Estado o controle sobre o sistema elétrico argentino, Fernández age em conformidade com a maioria dos países desenvolvidos. Mesmo na Grã-Bretanha, modelo de mercantilização dos serviços públicos desde Margaret Tatcher, uma pesquisa realizada há três anos por Matthew Elliott e James Kanagasooriam constatou que 83% da população é a favor da nacionalização da água e 77%, da eletricidade e do gás.
A onda neoliberal personificada por Tatcher afetou muitos países, que liberalizaram ou até promoveram alguma privatização, mas algumas das nações mais importantes do mundo mantiveram, em maior ou menor grau, significativo poder de intervenção direta do Estado no setor elétrico. Alguns governos, como o da África do Sul, chegaram a recuar nas medidas de privatização e liberalização por conta de seus resultados pífios.
Onde a hidroeletricidade possui papel fundamental, como no Brasil, empresas do Estado são amplamente predominantes. É o caso da Noruega, onde 90% da geração e da transmissão estão nas mãos de estatais. Na província do Quebec, no Canadá, a estatal Hydro-Quebec, maior produtora de energia elétrica do país, possui praticamente o monopólio do setor elétrico, exportando inclusive para os Estados Unidos.
Na terra do Tio Sam, aliás, apesar de o setor elétrico ser majoritariamente privado, as hidrelétricas são consideradas instalações estratégicas e fundamentais à segurança nacional. Por isso, são majoritariamente pertencentes ao Estado e em grande parte geridas pelo Exército.
Os EUA ainda oferecem o exemplo da TVA (Tennessee Valley Authority). A empresa, criada nos anos de 1930, foi responsável pelo maior programa de construção de hidrelétricas do país na década seguinte. Atualmente, a TVA permanece como renomada empresa estatal na geração de energia e desenvolvimento social na região.
Mesmo países com predominância da termoeletricidade não abrem mão da presença estatal. Caso da Rússia e da Índia, grandes países membros dos BRICS. Outra nação do bloco, a China possui o setor elétrico quase que totalmente controlado pelo Estado. O sistema é considerado estratégico para atender a crescente demanda interna do país.
A presença do Estado também é observada na França, segunda maior geradora de energia elétrica da Europa com a EDF (Eletricitè de France). Na Coreia do Sul, a KEPCO (Korean Eletric Power Corporation) controla geração, transmissão e distribuição.
Da Redação, com CUT e PT na Câmara