Partido dos Trabalhadores

Artigo: A decisão de Fachin e o caso Lula em 2018. E se fosse outro?

“A democracia convive muito mal com desrespeito à Constituição e saídas casuísticas”, adverte o advogado Luiz Fernando Casagrande Pereira

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Advogado Luiz Fernando Casagrande Pereira

Sei que não é fácil, mas faço aqui um apelo inicial ao leitor: imagine que o personagem do texto não seja Lula. Cogite substituir Lula por um político por quem você tenha afinidade política. Faço ainda um segundo apelo, agora mais fácil. Considere que é importante para um país republicano que a Constituição Federal seja respeitada. Como última premissa a autorizar uma melhor compreensão do que eu quero transmitir, repute válida a ótima frase do ministro Luís Roberto Barroso: “um país que vai mudando sua jurisprudência em função do réu não é um Estado de direito democrático, é um Estado de compadrio”. Com essas premissas, vamos lá.

Na eleição presidencial de 2018, Lula estava condenado em segunda instância. E estava preso. Os advogados criminais de Lula – acompanhados de quase toda a comunidade jurídica – sustentavam que a prisão de Lula era inconstitucional, pois não havia decisão final. E a Constituição Federal exige a última decisão para autorizar a prisão (artigo 5.º, LVII). Um ano depois, o Supremo reconheceu que a Constituição (gostemos ou não) exige mesmo a decisão final. E soltou Lula. A eleição já tinha sido realizada e Bolsonaro já era o presidente.

No tema da eleição, coordenei o time de advogados de Lula no TSE. Sustentávamos que ele tinha direito de disputar a presidência, apesar da existência de uma inelegibilidade provisória (condenação em segunda instância). Não se tratava de um privilégio, mas apenas da manutenção da jurisprudência. Lembrando Barroso, alterações casuísticas da jurisprudência não dialogam bem com o Estado de Direito democrático.

Olhando pelo retrovisor

Olhando pelo retrovisor, fica muito claro que foi um erro desconsiderar a jurisprudência para retirar Lula da eleição.

O artigo 16-A da Lei Eleitoral define que o candidato com pedido sub judice (ainda pendente de decisão final) pode participar regularmente da eleição, usando o horário eleitoral e com o nome garantido na urna eletrônica. Até o caso Lula, milhares de candidatos disputaram a eleição nessa condição de sub judice. Terminada a eleição, os eleitos nessa condição assumiriam – ou não (a depender da decisão final). O sistema não é bom, mas era a jurisprudência vigente (lembrem-se sempre do alerta do ministro Barroso).

A situação de Lula era ainda mais confortável juridicamente. Em meados de agosto de 2018, o Comitê de Direitos Humanos da ONU deu uma liminar (interim measure) afastando a inelegibilidade de Lula. A decisão tinha força vinculante, reconheceu toda a comunidade jurídica. Por que o Comitê da ONU afastou liminarmente a inelegibilidade? Entre outros argumentos, porque a condenação tinha se dado por um juiz incompetente (princípio do juiz natural) e suspeito (princípio da imparcialidade). O juiz era Sergio Moro, depois ministro de Bolsonaro.

Não era só isso. Mesmo desconsiderando a liminar do Comitê da ONU, a inelegibilidade de Lula era apenas provisória. Poderia ser revertida a qualquer momento. A jurisprudência sempre admitiu a suspensão superveniente (artigo 26-C) até a diplomação (artigo 11, §10.º). Aqui também a jurisprudência era tranquila.

A suspensão da inelegibilidade de Lula poderia vir a qualquer momento. No começo de setembro de 2018, Cristiano Zanin, muito competente e perseverante, foi ao Supremo e insistiu que a condenação merecia imediata suspensão. Entre as teses articuladas, outra vez a incompetência e a suspeição de Moro. Também no TSE, fizemos pedido para que a plausibilidade das teses de suspeição e incompetência fosse considerada.

A jurisprudência, enfim, estava toda conformada (e estabilizada) para garantir a candidatura de Lula até o final. Não adiantou. O registro de Lula foi indeferido em um tempo recorde, com alteração radical da jurisprudência. A partir do caso Lula, tudo seria diferente.

Em petição ao Supremo, em 11 de setembro de 2018, afirmamos, eu e Fernando Neisser, que retirar Lula da disputa mesmo com a probabilidade alta de acolhimento das teses de defesa (incompetência e suspeição, inclusive) deixaria a democracia brasileira numa dúvida eterna. Não teve como. A verdade é que a candidatura de Lula foi enterrada viva.

Agora, dois anos e meio depois daquilo tudo, o ministro Edson Fachin reconheceu a incompetência de Moro e a segunda turma do STF já tem dois votos pela suspeição. A decisão chegou tarde. Olhando pelo retrovisor, fica muito claro que foi um erro desconsiderar a jurisprudência para retirar Lula da eleição – que ficou com inegável déficit de legitimidade. Como reconheceu o ministro Fachin, em congresso jurídico realizado no ano passado, muito do que vivemos hoje tem relação com o indeferimento do registro de Lula. Mesmo respeitando a decisão, hoje fica claro que foi um enorme erro.

Alguém sempre pode dizer: não importa, Lula mereceu. E se não fosse Lula? Lembre-se, leitor, do início do texto. O que fizeram com Lula poderia ter por vítima qualquer um. A democracia convive muito mal com desrespeito à Constituição e saídas casuísticas. Não foi um bom movimento.

Luiz Fernando Casagrande Pereira é advogado e professor.