Depois das mobilizações de 2 de outubro, capilarizadas por cidades no país e no exterior, as avaliações sobre os acontecimentos convergiram. Ao reunir partidos políticos, movimentos sociais, centrais sindicais e agrupamentos opositores ao desgoverno liderado por Jair Bolsonaro, os atos promovidos condensaram a insatisfação orgânica da sociedade, frente a crise pandêmica e econômica. Contudo, pontuações formuladas sobre as manifestações instigam algumas ponderações, tendo em vista os próximos passos. No teatro político não se deve perder a essência do social, embora a tentação para as personalizações de ocasião.
As movimentações que chegaram a 700 mil manifestantes, somados, se repetem sem significativo aumento de adesões, incapazes de ultrapassar a barreira do milhão. Ao que junta-se a notícia de que o Genocida imantou uma avalanche de seguidores (entre robôs e robotizados) na terra sem lei do Instagram. Outros argúem que problemas materiais de locomoção do pobretariado criam um muro quase intransponível nas periferias. O fato é que a chave mobilizadora não achou a fechadura das demandas decorrentes de constrangimentos pungentes. Isso contribuiu para limitar a presença dos que estão empenhados na luta traumática pela sobrevivência. A desigualdade social se refletiu na participação política.
É inevitável o destaque na pauta que, de início, restringia-se ao impeachment do miliciano armamentista e à vacinação ampla, geral e irrestrita. A inflação bateu em dois dígitos, em média. A fome, o desemprego, as ocupações precárias, a informalidade, os despejos por falta de pagamento dos aluguéis tornaram o viver uma condenação infernal para as maiorias crivadas pela exploração. Explica-se a absorção contínua das demandas prementes, sentidas no cotidiano, como o preço inflacionário da gasolina, do gás de cozinha e dos alimentos.
Havia descompasso entre o momento político e o momento socioeconômico no portal das concentrações. A consigna “Fora Bolsonaro” exprimia um grau de politização que não interpelava o conjunto da cidadania. Não correspondia às carências imediatas de baixíssima renda. Assim, não efetivou as mediações nas mentes e nos corações do povo. O “concreto” é o imbricamento dialético do empírico com o abstrato, na consciência. A denúncia de centenas de milhares de mortos, pela incúria e prevaricação na aquisição de imunizantes, bem como pela escolha oficiosa de combate à pandemia com imunidade de rebanho por contaminação, sem vacinação – não ajudou a dar “concretude” às palavras de ordem.
Tradicionalismo vs. modernidade
O negacionismo apresentado com o galardão fetichista da liberdade individual não se resumiu à insurgência do primeiro mandatário et caterva. Foi encampado pelos templos neopentecostais que contestavam a proibição sanitária das aglomerações, de olho no dízimo, e pelo Conselho Federal de Medicina ao coonestar a prescrição de remédios charlatanescos responsáveis, não por curas, senão por óbitos. A saber, a Hidroxicloroquina e quetais recomendados por agentes ideologizados que pretextavam total independência no (mal) trato dos pacientes. Mas não iam aos velórios. Trata-se da rebelião contra os controles.
A gravação em que o presidente do CFM afirma que “está com o Bolsonaro” porque os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) fundaram cursos “para popularizar a medicina” fala por si. O depoimento, mesquinho, menospreza o compromisso ético-profissional da categoria com a saúde dos brasileiros(as), ao propugnar o atalho da escassez da oferta de serviços para impulsionar os rendimentos auferidos pela categoria. O dirigente da entidade justificou a observação satírica, do escritor Eric Nepomuceno, sobre aqueles que “confundem o juramento de Hipócrates (o trigo) com o juramento de hipócritas (o joio)”.
Na mídia empresarial, a celeuma sobre as soluções milagrosas, anticientíficas, virou um falso confronto de “narrativas” de igual relevância cognitiva. Os embates foram palco da disputa entre o Tradicionalismo de extrema-direita e os valores da Modernidade (a ciência, as universidades, a Organização Mundial da Saúde / OMS). A noção de que as áreas de conhecimento expressavam apenas narrativas nasceu com as reflexões pós-modernas que, de forma involuntária, levaram água ao moinho do obscurantismo. Verdade e mentira se converteram então em duas faces da mesma moeda. Ao freguês coube a opção no menu. A liberdade de expressão travestiu a disseminação de opiniões bizarras atentatórias à vida.
A conjuminação de fatores, que vão da pauta reivindicatória (politicista, quando dissociada da base socioeconômica) às condições de pobreza e miséria de milhões de famílias, desembocou em estatísticas que indicam nos eventos da oposição um percentual majoritário de partícipes com extração nas camadas intermediárias. Há que combinar as esferas, política e socioeconômica, para dar um salto de qualidade visível na demonstração da “potência plebeia”. As manifestações anteriores foram adequadas e impactantes o suficiente para conter o desfile verde-amarelo do cheiroso time de rua da CBF. Agora, cobram ajustes e aperfeiçoamentos para prosseguirem. Como sói acontecer na história, a experiência abriu as janelas do entendimento. É hora de tirar lições e ir adiante. Com humildade e vigor.
Solidariedade material intraclasse
As investidas servis às “elites” do usurpador decorativo, Michel Temer, contra os sindicatos causaram estragos. Imitou-se nos Trópicos o combate de Margaret Thatcher aos enclaves dos trabalhadores, na Inglaterra. O ataque às conquistas sociais e direitos adquiridos começou pelo desmantelamento das ações dos sindicalistas. Uma das consequências mais nefastas da Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017) foi o fim da contribuição sindical obrigatória, portanto, da capacidade de arregimentação dos sindicatos. A aceleração do desemprego, aliada ao processo de desindustrialização, cumpre idêntica função desagregadora. O sindicalismo é a guarda popular do Estado, em qualquer democracia. Bolsonaro não inventou nada inédito para ferrar com os interesses do bloco dos assalariados. Seguiu a cartilha, falando grosso com o trabalho e, fino, com o capital.
As questões materiais, que dificultam a incorporação de segmentos sociais aos cortejos de massas por mudanças estruturais contra a destruição da sociabilidade democrática, pesam na resposta (moral-política) às convocatórias avessas à continuidade do despresidente perverso no comando da nação. O poder do dinheiro não influi somente na composição da representação nas casas legislativas. Influi também no acesso aos meios de transporte até os locais de realização dos protestos. O decrescimento econômico atinge principalmente guerreiros(as) e batalhadores(as), que moram distantes dos pontos convencionais de encontro chamados pelos coletivos da seara republicana. É, como é. Que fazer?
Eis o nó a desatar. Num plano, dialeticamente, conciliar a agenda política com a a agenda socioeconômica, através de bandeiras que dialoguem de maneira horizontal com as carências que coíbem inclusive a reprodução da força de trabalho, e que recrudescem dia a dia. Noutro plano, solidariamente, elaborar estratégias para que os condicionamentos materiais possam ser superados pela contribuição voluntária aos deslocamentos. Setores democráticos da classe média teriam a oportunidade de cimentar o seu espírito crítico.
Isso poderia ser equalizado com a formação de “Ligas em Favor dos Atos Pró-Democracia” para arrecadações com tal finalidade, sob supervisão dos organizadores por territórios delimitados. Não faltaria a empatia intraclasse. De cada um segundo suas possibilidades, a cada um segundo suas necessidades, reza a máxima. Marx e Engels, ao aludir as visões de mundo, mencionaram a “révolution dans la tête des ouvriers / revolução na cabeça dos operários”, lê-se em um verbete de George Labica e Gérard Bensussan (Dictionnaire Critique du Marxisme, Ed. PUF). Aqui, o propósito é permitir que os corpos se movam com autonomia política, sem grilhões. O solidarismo militante pode alavancar a práxis política.
O sentido de urgência para o Brasil
O filósofo greco-francês, que chegou a acompanhar assembleias do Orçamento Participativo (OP) em Porto Alegre nos anos 90, Cornelius Castoriadis (La Cité et les Lois, Ed. Seuil), classificou as conjunturas limítrofes como “um período revolucionário em que cada um deixa de ficar em casa, sendo o que se é, sapateiro, jornalista, trabalhador ou médico, e se torna um cidadão ativo que quer algo para a sociedade e sua instituição, e considera que a realização desse algo depende diretamente dele e dos outros e não de uma votação ou do que seus representantes farão em seu lugar”. Equalizar a relação de meios e fins implica democratizar o animus da intervenção cidadã para a consecução de avanços civilizatórios. Não basta a razão, há que metabolizar com as próprias vísceras o sentimento da razão.
A disposição anímica, tanto pode ter vetor progressista, quanto reacionário. A subjetivação bolsonarista processou o mito de uma revolução contra a democracia liberal. Prova de que a união do autoritarismo com o liberalismo econômico fagocitou o liberalismo político (de arrastão, a terceira via). Enterrou a fantasia do social-liberalismo. Não importa, para o imaginário fascista, a rendição de lesa-pátria de Bolsonaro ao Centrão para não cair da cadeira presidencial. Importa, para o esforço de compreensão do fenômeno, que a existência de condições histórico-sociais forneceu elementos à convicção de que a irrupção extremista de direita deflagrou o aparatoso revolucionarismo. A apropriação da recusa sistêmica ao que está-aí é uma força poderosa, nas mãos de um séquito forjado no ódio à igualdade.
Focar nas eleições vindouras para efetuar mudanças é apostar demasiadas fichas na combalida institucionalidade. É ignorar a deslegitimação a que as instituições da República se submeteram com um silêncio obsequioso, perante as ilegalidades da Lava Jato ao pavimentar a queda da presidenta Dilma Rousseff (2016) e o impedimento da candidatura de Lula da Silva (2018) ao propiciar a ascensão do fascismo. O drama envolveu o Supremo Tribunal Federal (STF), ninguém duvida. Se o politicismo é um equívoco, pois, o institucionalismo o é em dobro nas circunstâncias atuais. Anda-se no fio. Acenar com a governabilidade de novo tipo é crucial para mostrar a luz da esperança no fim do túnel.
No mar revolto da destruição neoliberal que engolfa direitos sociais e trabalhistas, os afogados não têm fôlego para esperar o bote salva-vidas. O sentido de urgência dos apelos do campo democrático-popular é real. O Brasil não aguenta mais. O entrelaçamento (tecido em palavras de ordem) da política com o socioeconômico, a cooperação classista à materialidade das mobilizações para transcender o pesadelo em curso e, junto, os resultados colhidos pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 contribuirão para esquentar o sentido de urgência. O mesmo não se equipara ao irracionalismo filosófico do elã golpista, por óbvio. Este, compete em uma raia de cem metros. Os socialistas e democratas correm na maratona para reconstruir o país. A energia para manter privilégios atávicos é distinta da luta democratizante pela distribuição do direito a ter direitos. A empreitada antifascista e antineoliberal deve prosseguir avançando, palmo a palmo.
Em suma, esse é o caminho para dirimir as profundas desigualdades sociais e para usufruir das liberdades coletivas fiadoras das autênticas liberdades individuais. Nada a ver com a desobediência narcísico-arrogante às orientações e aos protocolos estabelecidos pelas autoridades sanitárias, o escárnio ao isolamento social, as receitas medicamentosas que prometem o que não cumprem, a indiferença com o sofrimento do povo trabalhador ou com a responsabilização da democracia liberal pelos crimes do capitalismo de garras afiadas pela financeirização. Tudo a ver com a humanização da sociedade. Hasta la victoria!
Professor de Ciência Política da UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul (Governo Olívio Dutra).