Muito se tem recorrido ao conceito de polarização para descrever o atual momento político no Brasil. Lideranças partidárias, analistas, a posição editorial majoritária da mídia corporativa e até cientistas políticos têm se valido da exploração do conceito, a partir do qual constroem discursos e estratégias, interpretam os conflitos, comunicam certos ângulos de análise e elaboram teses, todos com o objetivo de induzir ou prospectar cenários.
Cada vez mais, a classe dominante e grande parte da chamada classe média alta, outrora qualificada como a grande formadora da opinião pública, começam a reverberar esses discursos, a partir da mesma base de interpretação: a tal polarização e seus “males”, o novo fantasma a assustar o status quo característico da estrutura social brasileira.
Haja vista o peso político desses atores, convém dedicar alguma atenção a esse debate, com o propósito de verificarmos em que medida, de fato, o conceito de polarização política é ou não pertinente, nos vieses pelos quais vem sendo abordado, as implicações de sua utilização e o desvelamento das intencionalidades políticas que o põem em relevo.
Antes de mais nada, há que se levar em conta que o que experimentamos atualmente no Brasil, com a exacerbação dos métodos, a radicalização e a irracionalidade do debate, a presença do ódio como forca motriz na ação política, não se trata de algo novo, nem de um advento exclusivo de nossa conjuntura. Em diferentes momentos da história, períodos de instabilidade social foram contemporâneos de processos políticos semelhantes em distintas partes do mundo. Há que se ter em conta, ainda, que a emergência do radicalismo populista de direita que aqui testemunhamos constitui um fenômeno presente em diversos países na atualidade.
A esse respeito, há duas nuances que considero importante destacar. Uma, de caráter genérico, diz respeito à forma pela qual vem se dando ascensão de lideranças autoritárias a frente desses movimentos políticos “dentro das regras do jogo”, ou seja, pelo menos proforma, via sistema democrático. A outra, que nos diz respeito mais especificamente, refere-se à necessidade de contextualizarmos e dimensionarmos as origens, o desenvolvimento e os efeitos desse fenômeno sobre a estrutura política, social e econômica de cada nação, e sobre a comunidade das nações, a partir das características de cada sociedade e de sua evolução histórica. Nesse sentido, são gravíssimas as consequências já sentidas e em perspectiva no nosso País.
Cumprida essa breve contextualização, voltemos ao tema da polarização. Haja vista sua farta utilização e as distorções a que a superficialidade da comunicação de massa nos impõe, julgo necessário nos determos um pouco sobre o conceito, antes que a pressa nos conduza aonde nos querem levar sem maior reflexão.
Um primeiro aspecto a ser discriminado é que o conceito de polarização traz embutido, simultaneamente, uma certa noção de simetria e de oposição. Ou seja, polos encontram-se em posições opostas um ao outro e com algum grau de similaridade em suas conformações. Como se vê, por exemplo, nos polos geográficos do planeta.
Nesse sentido, cumpre verificarmos em que medida Lula e Bolsonaro, ou, melhor dizendo, o projeto político liderado por Lula ao longo dos últimos 40 anos, ancorado na maior organização partidária de base popular do País, testado em diversos níveis da administração pública e da representação parlamentar, se contrapõe, na condição de polo, ao fenômeno traduzido pela ascensão ao poder de um completo desconhecido da cena política nacional, com nenhuma tradição orgânica, perfil autoritário e forte base popular, após um intenso desgaste político e midiático do governo petista. De que polarização nos falam alguns políticos, jornalistas e cientistas sociais nesse contexto? E que polarização omitem?
Se nos voltarmos para alguns dos aspectos estruturantes de um programa governamental, não obstante a impossibilidade lógica de agruparmos o conjunto de interesses, ideias e ações desconexas do Governo Bolsonaro sob o rigor de um programa coerente, há, de fato, uma polarização que precisa ser objeto de profundo debate na sociedade, especialmente com vistas às eleições de 2022.
O PT se construiu historicamente sobre algumas bases compartilhadas pelas diferentes forças políticas que o constituíram: a democratização do Estado, a afirmação da soberania nacional, a presença forte do setor público na indução do desenvolvimento social e econômico, o combate às desigualdades sociais, o protagonismo político da classe trabalhadora, a solidariedade entre os povos.
Visto sob o ângulo desses pressupostos, o Governo Bolsonaro representa, de fato, o extremo oposto: ataca constantemente e fragiliza os princípios e as instituições democráticas, submete a política externa e o interesse econômico nacional aos Estados Unidos, patrocina uma retirada brusca e irresponsável do estado na garantia de direitos sociais, no desmonte de políticas e em sua participação em setores estratégicos ao nosso desenvolvimento soberano, trouxe consigo o aumento da desigualdade, da pobreza e da miséria, criminaliza os movimentos sociais e cultiva uma relação belicosa, preconceituosa e odienta com nações importantes na geopolítica mundial, ao mesmo tempo em que abandona parcerias com o continente africano e a América do Sul.
A partir dessa perspectiva, analisando a forma ardilosa, escancarada e nada ingênua com que se apresenta o argumento da polarização na arena pública, muitas vezes disfarçado de cautela, bom senso ou zelo democrático, convém questionar: diante do desastre econômico e social que estamos vivendo, com mais de 340 mil mortos em razão da pandemia, desemprego de 15%, a mistura nefasta de estagnação e repique inflacionário, o aumento da pobreza e da miséria, para não falar da instabilidade institucional provocada a todo instante pela inépcia irresponsável do Presidente, não nos conviria, nesse momento, colocar em relevo exatamente esta dimensão qualitativa da polarização?
Não é exatamente esse o debate que necessitamos para elaborar as sínteses necessárias às escolhas estratégicas que o País tem diante de si? E para os que de boa-fé demonstram preocupação real com o tema da polarização: sob este ângulo, é só o PT que polariza com Bolsonaro? Se a resposta a essa última questão for afirmativa, das duas uma: ou estamos em muito maus lençóis, ou será necessária muita humildade e bom senso daqueles que disputam circunstancialmente com o PT, para reconhecerem a necessidade de reunirem-se em torno de Lula, até aqui a única liderança com força eleitoral e demonstrada capacidade de estadista, para superarmos esse soluço autoritário e retomarmos o caminho de consolidação democrática iniciado com o fim da ditadura militar.
Lula e Bolsonaro expressam a polarização de projetos políticos de classes distintas. Lula brota da organização popular na luta por democracia e justiça social. Bolsonaro, da velha política, extremo oposto do que pregou. Ressuscita a perigosa interferência militar na vida pública, associa-se à classe dominante e seus lacaios do centrão, temerosos da continuidade de um projeto popular, e dá voz pública e poder a uma ancestral e maquiavélica estratégia de dominação: a manipulação da fé.
Não obstante, o viés predominante, subjacente aos discursos públicos sobre a polarização, vai em outra direção. Suas bases são perigosas porque semelhantes às que nos conduziram ao atual desastre político. Não poderão, por óbvio, nos levar a sua superação. De forma superficial, mas persistente e bem disfarçada na voz de comentaristas elegantes, na elaboração de analistas e no discurso eloquente (mas desesperado) de aspirantes à Presidência, o que se quer induzir é a ideia de que os governos do PT foram tão desastrosos como tem sido o descalabro Bolsonaro.
Convenhamos, não é preciso ser de esquerda ou de direita para se render ao bom senso. Qualquer avaliação séria e isenta, desde as feitas pelos organismos internacionais ou pela academia, até a opinião política das grandes potências mundiais, que até hoje não compreendem por que Lula foi preso, desmoraliza essa falsa narrativa.
Sem prejuízo de seus equívocos, os governos petistas fortaleceram a institucionalidade democrática, reduziram a pobreza e a desigualdade, exerceram forte liderança internacional, ampliaram o SUS e o acesso educacional, foram predominantemente marcados por períodos de crescimento econômico e fortaleceram a soberania nacional, tudo isso para ser excessivamente conciso, em um balanço que leve em conta objetivos que poderiam ser defendidos pela maioria, se não pela totalidade dos partidos políticos.
O que temos aqui é uma polarização falseada, com a intenção de produzir uma conclusão rasa e equivocada na cabeça do eleitor: Bolsonaro e Lula seriam faces opostas da mesma moeda. Ou seja, tentam reduzir Lula a Bolsonaro. Trata-se do mesmo falseamento que se viu no impeachment sem crime de Dilma, na prisão ilegal de Lula e na campanha eleitoral fake de Bolsonaro. Deu no que deu. Quem espera que o mesmo recurso, agora, nos poderá levar a destino diferente?
Os riscos institucionais, políticos, econômicos e sociais inerentes a essa estratégia já estão demonstrados na pior dimensão da dor, vivida atualmente pelo povo brasileiro. Muitos dos que têm o poder de alardear na mídia suas “imensas preocupações” com a polarização política nas eleições de 2022, já têm claro o que farão num eventual segundo turno com Lula e Bolsonaro. Repetirão o voto de 2018 ou irão para Paris. Melhor seria ter prevenido o desastre lá atras.
A meu ver, portanto, compõe o combate necessário ao Bolsonarismo, por tudo que representa de retrocessos, o enfrentamento a esse falso dilema da polarização. Não será nos acovardando diante da violência política, retórica ou concreta, que fortaleceremos as instituições para enfrentá-la. Não será submetendo a Democracia, mais uma vez, a versões convenientes a alguns projetos políticos, amedrontados com seus riscos de insucesso eleitoral, que corrigiremos a tragédia de 2018. Para os que temem a exacerbação dos debates no seio da sociedade, a partir de experiências reais ou pela vivência pessoal nos grupos familiares e de amigos no whatsapp, recomenda-se o exercício da militância intensa, consciente, proativa, responsável.
Não se deve omitir uma polarização que precisa ser superada, sob o risco de sua própria permanência. E a superação de uma polarização só se faz possível quando os conflitos são vividos. É para isso que existem as democracias: para superarmos pacificamente os nossos conflitos. Omitir os conflitos que realmente importam não nos permitirá superá-los.
Visto de outra forma: deixar-se conduzir pela subversão do conceito de polarização, através de um discurso que o manipula para tratar como polos, pelo viés negativo, duas alternativas de poder que não podem ser contrapostas pela materialidade do que foram e do que são, com o objetivo político de viabilizar outros caminhos, terminará por trazer à tona o risco de se realizar exatamente aquilo que se diz querer evitar: uma polarização de baixo nível, em que qualquer resultado será uma derrota para o povo brasileiro.
Guilherme Sampaio é educador, vereador e presidente do PT Fortaleza