O processo de urbanização no Brasil, que vinha sendo acompanhado pela passagem dos espaços geográficos dos circuitos econômicos do inferior para o superior, foi interrompido a partir dos anos 1990. De acordo com os estudos seminais de Milton Santos (O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos, 1978), os circuitos econômicos revelariam a dinâmica diferenciada da produção e circulação sobre o território nacional.
A partir dos anos 1880, com a dominância do modo de produção e distribuição capitalista no Brasil, a escravidão foi interrompida, dando lugar ao regime de trabalho assalariado. Sua trajetória foi crescente, avançando continuamente sobre as relações de produção não tipicamente capitalistas até então vigentes.
Um século depois, quando o país ingressou de forma passiva e subordinada na globalização durante a última década do século 20, o regime de trabalho assalariado típico das atividades capitalistas (circuito superior) passou a retroceder significativamente no país.
Há oito décadas, a ocupação no segmento não tipicamente capitalista (circuito inferior) era majoritária no país. Em 1940, por exemplo, a ocupação pertencente à economia popular e de subsistência que opera geralmente sem o objetivo do lucro – próprio do processo de acumulação de capital – respondia por 53% do total da População Economicamente Ativa do Brasil (PEA). Para o mesmo ano, o regime de trabalho assalariado vinculado ao setor privado da economia capitalista empregava 44%. Ao mesmo tempo, o setor público, que não funciona segundo a lógica capitalista, era responsável por cerca de 3% do total da força de trabalho.
No auge da sociedade urbana e industrial transcorrida na virada dos anos 1970 para 1980, o regime de trabalho assalariado nas atividades capitalistas atingiu a sua maior expressão. Em 1989, por exemplo, 57% do total da População Economicamente Ativa pertencia às atividades tipicamente capitalistas, ao passo que o emprego público respondia por 11% da PEA e a economia popular e de subsistência com 32% da força de trabalho.
Mesmo com todo o dinamismo da organização capitalista de produção e distribuição no país, a economia popular e de subsistência não desapareceu. Ao contrário, subsistiram e até emergiram diante de oportunidades abertas pelo próprio processo de acumulação de capital.
Nota-se que em quase meio século, o regime de trabalho capitalista se tornou dominante com expansão média anual de 0,5% entre 1940 e 1989. Para o mesmo período de tempo, o emprego público cresceu ainda mais rápido (2,4% em média anual), enquanto a ocupação na economia popular e de subsistência regrediu 0,7% em média ao ano.
Naquele contexto, as instituições de representação de interesses próprias da sociedade urbana e industrial floresceram (sindicatos, associações, partidos), apesar dos períodos autoritários (Estado Novo, 1937-1945, e Ditadura civil-militar, 1964-1985). A ampliação da classe operária e dos segmentos assalariados classificados como intermediário e superior da estrutura ocupacional indicaram o quanto a mobilidade social era ascendente, ainda que profundamente desigual.
A perda do dinamismo econômico no Brasil neste início da terceira década do século 21 revela o quanto o sistema produtivo complexo, diversificado e integrado regrediu para a simplificação da especialização direcionada à exportação primário-exportadora e financeirizada. O resultado disso foi a alteração substancial na composição das ocupações no total da força da População Economicamente Ativa.
O regime de trabalho assalariado no segmento capitalista declinou 0,4% ao ano, em média, entre 1989 (57% da PEA) e 2022 (49%). No idêntico período de tempo, a ocupação no setor público em relação à PEA se manteve estabilizada em 11%, ao passo que a economia popular e de subsistência aumentou a ocupação, em média, 0,7% ao ano (32%, em 1989, para 40%, em 2022).
Com isso, a trajetória de mobilidade social ascendente foi interrompida, acompanhada que foi pelo rebaixamento geral das condições de ocupação e vida da classe trabalhadora. Na sequência, houve o esvaziamento das instituições tradicionais da representação de interesses políticos e sociais.
Para além da descrição das consequências geradas no interior do mundo do trabalho, é necessário compreender o equívoco acerca da insistência da ação governamental continuada quase que exclusivamente às organizações capitalistas de produção e distribuição, pois, especialmente do ponto de vista do trabalho, o setor público e a economia popular e de subsistência compreendem a maior parte das ocupações em relação ao conjunto da População Economicamente Ativa.
Nas atividades não tipicamente capitalistas prevalece a presença dos trabalhadores sem proteção social e laboral, distantes da Justiça do Trabalho e da organização sindical. Também se destaca a ausência de políticas públicas adequadas justamente quando o circuito inferior da economia mais avança.
Marcio Pochmann é economista, professor e presidente do Instituto Lula
Publicado originalmente no site Terapia Política