A nomeação de Antony Blinken para o cargo de Secretário de Estado de Joe Biden, assim como as nomeações para o resto do gabinete, sinalizam que as previsões pessimistas sobre a próxima política externa estadunidenses podem se confirmar.
Blinken tem uma longa folha de serviços prestados às administrações democratas. É um quadro orgânico do Deep State.
Embora favorável a alianças e negociações, Blinken é um fervoroso defensor da pax americana e da ideia de que só EUA têm de exercer liderança mundial para expandir os valores da “democracia e dos direitos humanos”, resolver problemas mundiais, como mudanças climáticas, e defender seus interesses.
Intentará restaurar a “liderança dos EUA no mundo”, comprometida pelo America First de Trump.
Isso é perigoso. Blinken é conhecido por ser “intervencionista”, eufemismo para alguém que gosta de descer o chicote no lombo de países vistos como adversários. Uma espécie de falcão com verniz “harvadiano” e diplomático, fluente em francês (passou a adolescência em Paris) e com bons contatos no aparelho de Estado e em grandes empresas.
Esteve por trás da “revolução ucraniana” e das sanções contra a Rússia por causa da Crimeia. Defendeu bombardeios e ações militares mais pesadas contra a Síria, o que foi rejeitado por Obama.
Para Blinken, o mundo passa por uma espécie de “recessão democrática”, entronizada por Trump, a qual permitiu que autocracias como Rússia e China explorassem as “dificuldades” dos EUA.
Apesar de considerar que romper com a China seja irrealista e que há espaço de cooperação em algumas áreas, como meio ambiente, Blinken pensa ser vital conter o “expansionismo chinês”. Vai investir na Parceria Transpacífica, abandonada por Trump, e exercer muita pressão política sobre Beijing, usando democracia e direitos humanos como escusas e justificativas.
Em relação à Rússia de Putin, deveremos ter uma franca hostilidade, de consequências imprevisíveis. Blinken vê Putin como um cruel “ditador”, que precisa ser contido. No mínimo, deverá impor novas sanções.
O mesmo deverá ocorrer em relação à Coreia do Norte, cujo líder é classificado por Blinken como “tirano”.
No que tange ao Irã, Blinken quer recolocar os EUA no acordo sobre o desarmamento nuclear, abandonado por Trump. Mas intentará fazê-lo para aumentar o rigor e a extensão dos compromissos já assumidos por aquele país, o que poderá inviabilizar o acordo.
Em relação ao Oriente Médio, Blinken vê com olhos críticos as grandes intervenções militares, feitas sem “estratégia definida”, mas defende o uso generoso de drones e o envio de “forças especiais” a conflitos. Segundo ele, isso pode fazer uma “grande diferença”.
Na América Latina, não deveremos ter progressos. Para ele, Maduro é um “ditador”, que também precisa ser contido. Dada à admiração de Blinken pelas special forces, e seu uso em “conflitos”, não se pode descartar, no limite, uma intervenção militar naquele país, ainda que de pequeno vulto. De qualquer forma, a pressão econômica, política e diplomática continuará.
Ademais, Biden, ouvindo Blinken, fala muito em “conter a corrupção” em outros países, de modo a criar um ambiente concorrencial que beneficie as empresas dos EUA. Isso parece indicar que o DOJ poderá redobrar seus esforços em promover lawfares contra regimes que não sejam do agrado dos EUA. Assim, a “guerra híbrida” poderá ser fortalecida.
O grande problema de Blinken, Kerry, Sullivan e dos outros indicados por Biden é que eles têm uma grande dificuldade em entender e aceitar as mudanças estruturais que estão acontecendo celeremente na ordem mundial.
Eles não aceitam o fato de que os EUA não terão mais a hegemonia inconteste que desfrutavam desde a queda da União Soviética.
Colocam toda a culpa dessa perda de hegemonia em Trump. Não é. O mundo está mudando de forma profunda e irreversível. Uma política externa realista e não-conflitiva deveria começar pelo reconhecimento desse fato.
Blinken diz que começou a aprender diplomacia em sua escola de ensino médio em Paris, pois se viu impelido a defender o “papel benigno” dos EUA no mundo, então dividido pela Guerra Fria. Seus colegas dizem que ele o fazia com “grande entusiasmo”.
O novo Secretário de Estado, cujo padrasto é um sobrevivente do Holocausto, realmente acredita que a pax americana é benéfica para todos. Um império de boas intenções.
O problema é que esse império de boas intenções cria um inferno.
Marcelo Zero é sociólogo e assessor da bancada do PT no Senado Federal.