Quem dá mais? Quem é que dá mais de um conto de réis?
Quem dá mais? Quem dá mais?
Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três!
Quanto é que vai ganhar o leiloeiro
Que é também brasileiro
E em três lotes vendeu o Brasil inteiro?
Quem dá mais?
Noel Rosa, na música “Quem dá mais”, de 1932
O Ministro Luís Roberto Barroso consagrou sua definição síntese sobre o brasileiro. Citou a empregada de um amigo que não queria o registro para poder receber o Bolsa Família. O Ministro que, antes do Supremo, mantinha um emprego de funcionário público (como procurador do Rio de Janeiro) com um escritório de advocacia que servia a grandes empresas, preferiu o estereótipo do brasileiro de classe baixa, malandro por natureza. Na época, ele cumpria o rito de escrever sobre o Brasil artigos longos, coalhados de lugares-comuns, mas com o formato de “ensaios”.
Seria interessante conhecer sua análise sobre as raízes do Brasil, a prática recorrente de vender o Brasil inteiro, que vem desde o século 19 e que se repete agora, como efeito direto da cruzada de falso moralismo que sacudiu o país, e que teve em ele um dos arautos mais ostensivos. Afinal, o punitivismo levaria o país a um novo Iluminismo.
Ontem, o iluminismo baixou no Congresso. Na Câmara, assumiu a presidência o braço direito de Eduardo Cunha, o deputado Artur Lira.
Ontem, seu primeiro ato foi uma visita a Bolsonaro para tratar das prioridades nas pautas do Congresso. Assim como na música de Noel, a venda do país foi em três lotes.
O lote do mercado consistiu na promessa de privatização da Eletrobras, flexibilização do setor elétrico, esvaziamento dos fundos públicos (responsáveis por algumas das principais políticas sociais do país), autonomia do Banco Central.
O segundo lote vai para sua turma: mineração em terras indígenas, registro, posse e porte de arma de fogo, licenciamento ambiental, regularização fundiária (para formalizar todas as invasões de terra), estatuto do índio.
O terceiro lote, uma pequena pauta moral para garantir o manutenção do apoio dos evangélicos: lei de drogas, normas para militares em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), aumento de pena em casos de abusos de menores.
No mercado, a comemoração foi instantânea. O New York Capital, assessoria de investimento ligada ao banco XP, não disfarçou a euforia: “estão deixando a gente sonhar?”.
Há dúvidas sobre se o trabalho será entregue na integralidade. Completado, se terá perpetrado o maior assalto ao patrimônio público, ao patrimônio ambiental e ao futuro do país, em todos os tempos. E se terá coroado – com um legítimo sucessor de Eduardo Cunha – o diligente trabalho da mídia, Supremo Tribunal Federal, Ministério Público Federal, TRF4, Lava Jato. A destruição do sistema político, a desmoralização das instituições, a abertura do país aos negócios da privatização conquistou o feito inigualável de entregar um país indefeso ao mais inescrupuloso grupo político da moderna história do país, o grupo organizado por Eduardo Cunha, Wellington Moreira Franco, Eliseu Padilha, Geddel Vieira de Lima e Michel Temer.
A versão de que Bolsonaro tornou-se refém do Centrão não procede. Refém por que? Ele concorda com todos os pontos de desmonte das áreas social, ambiental. Não tem a menor preocupação sobre os impactos de uma privatização mal feita. Nem em lotear todos os cargos públicos. Afinal, quem se permitiu, na maior pandemia enfrentada pelo Brasil, entregar o Ministério da Saúde a um grupo de militares despreparados, não terá problemas com outras formas de loteamento do setor público.
Entregando o que lhe pedirem, Bolsonaro abre caminho para acelerar sua verdadeira estratégia: a militarização de suas milícias e dos clubes de caça e tiro para o caso de falhar a reeleição de 2022.
Tem-se um país definitivamente à deriva, com todos os poderes amarrados pelos compromissos firmados com os negócios da privatização.
Tudo isso se dá ao mesmo tempo em que os documentos da Vaza Jato completam o quadro de manipulação do inquérito com fins obviamente políticos.
Como é que faz? Permitiu-se o desmanche do sistema político. O Centrão sempre existiu, mas era contido pelos partidos políticos que controlavam a governabilidade pós-Constituinte, o PSDB e o PT. O PSDB se esvaiu nas mãos de políticos inescrupulosos, como José Serra e Aécio Neves. O PT, por conta de um processo de desestabilização que veio desde o “mensalão” e contra o qual ele não soube se defender.
Como é que fica? Durante algum tempo, o Supremo se escudava no discurso milagreiro do mercado. Se deixar tudo por conta do mercado, haverá uma era iluminista.
Ora, provem que não houve má fé, mas apenas uma ilusão de ótica, temperada com deslumbramento.
Luis Nassif