A cultura, pensada como a expressividade, a sensibilidade, produção de códigos de significado e de obras de arte, ou seja, em um sentido amplo e emancipatório, detém no Brasil uma participação decisiva para a formação da nossa identidade nacional, na garantia da nossa integridade como nação. É por meio da cultura que se forma um povo, que se conforma um sentimento de que, com nossas diferenças, estamos no mesmo “barco da história”. Em suma, não há nação sem cultura e sem arte. Por isso, quando retomamos a democracia nos anos 1980, os legisladores incluíram em nossa Constituição a cultura como um direito e o Ministério da Cultura foi criado.
As políticas culturais, a liberdade artística e de expressão e o direito pleno à fruição cultural são conquistas democráticas. Em vista disso, ameaçar e asfixiar a produção cultural e artística significa desprezar o que nos faz uma democracia, e, igualmente, intimidar e inviabilizar a nossa capacidade de atuação como comunidade. E esse é o objetivo de Jair Bolsonaro e seu governo: desestabilizar as liberdades, esmagar os direitos populares e erigir um sistema autoritário e reacionário. A cultura é alvo porque jamais se enquadraria em um projeto regressivo desses.
Tradicionalmente, uma das primeiras ações de ditaduras e de pessoas de viés autoritário quando chegam ao poder é buscar silenciar os artistas e fazedores de cultura. A tentação do arbítrio sempre incorpora a censura e a perseguição aos fazedores de cultura como parte de seu programa. O atual governo brasileiro flerta com a desintegração nacional, com o massacre do povo pela fome e pelo vírus e para atingir tais objetivos é fundamental intimidar o setor cultural e sua pluralidade.
O desmonte das políticas culturais, sobretudo as construídas a duras penas durante os governos de Lula e Dilma,é elemento central do programa do governo de extrema-direita. Para eles, é essencial calar a cultura. A chamada “guerra cultural” é propagada pelo bolsonarismo em seu afã de perpetuação no poder e, também, está implicada em um compromisso geopolítico com a recolonização do país, a partir da submissão nacional aos interesses estrangeiros, sobretudo dos Estados Unidos.
Como o projeto de Bolsonaro é um projeto de destruição e recolonização nacional, ele trata de maltratar e asfixiar o setor cultural, buscando inviabilizar ao máximo a expansão da produção e a sobrevivência de artistas e cultores, indo na contramão do mundo e a favor do seu projeto regressivo
A extinção do Ministério da Cultura e sua substituição por uma secretaria desvalorizada, comandada por gente desqualificada para a gestão, e desnutrida de suas capacidades administrativas e de elaboração de políticas públicas, tem efeito simbólico e prático na ofensiva bolsonarista contra a cultura brasileira. Os sucessivos cortes orçamentários, a descontinuidade de projetos e ações, a inviabilização de instrumentos de apoio e fomento são instrumentais na guerra cultural do governo, bem como é a censura aos editais calcada no combate à valorização da diversidade cultural. A tolerância da extrema-direita com o dissenso e a diferença é nenhuma, quem desvia da normatização ideológica é percebido como inimigo a ser exterminado.
Recentemente o Fórum dos Secretários Estaduais de Cultura denunciou em carta aberta que a operacionalidade da lei Rouanet estava sendo bloqueada pelo governo federal. Efetivamente, desde a posse de Mário Frias, o instrumento de incentivo fiscal praticamente zerou a sua atuação. Nenhum projeto é apoiado e, com isso, muitos artistas, produtores e gestores passam dificuldades para sobreviver, instituições culturais se encontram inviabilizadas e podem fechar as portas.
Ironicamente, a ofensiva bolsonarista contra a lei Rouanet, obriga a esquerda a defender o mecanismo, que desde sua criação se firmou como principal forma de fomento à cultura no país, mas que sempre foi entendida como um instrumento com muitos defeitos pelos progressistas. Historicamente, por exemplo, o Partido dos Trabalhadores buscou reformar a legislação para que a discricionaridade dos departamentos de marketing das empresas para indicar os recursos para o setor fosse reduzida em favor do Fundo Nacional de Cultura, que poderia ser um instrumento mais democrático de distribuição dos recursos públicos. Entretanto, atualmente, torna-se imperativo defender que o incentivo fiscal funcione em sua plenitude para que possa irrigar importantes ações e instituições culturais.
A paralisia na lei Rouanet se repete no audiovisual. O Fundo Setorial do Audiovisual foi uma conquista de primeira grandeza para a produção cultural brasileira, êxito dos governos de Lula e Dilma junto do setor. É um instrumento de fomento com fonte de recursos garantida e permanente, o Condecine. O FSA permitiu que a nossa produção cinematográfica explodisse nos últimos anos em quantidade e qualidade. Nossos filmes e nossas séries começaram a ser assistidos dentro e fora do país, recebendo atenção e premiações. O setor começou a ganhar projeção simbólica e econômica, algo que somente a música brasileira havia atingido nessas proporções. Contudo, mesmo com tantos resultados positivos a apresentar, hoje, há no fundo recursos de mais de 2 bilhões de reais disponíveis, porém o governo Bolsonaro usa de subterfúgios para impedir a aplicação desses valores para a produção audiovisual. O que explica isso é a decisão ideológica e, como veremos, geopolítica de conter nossos cineastas e realizadores.
Até o início da pandemia, de acordo com a UNESCO, tínhamos mais de 7,2 milhões de trabalhadores na área, mostrando sua importância econômica e para a geração de empregos sustentáveis – normalmente não considerada nesse aspecto
Em termos econômicos, a cadeia produtiva do audiovisual empregava mais que a indústria automobilística no país até 2019. Todos os dados de produção e os resultados em prestígio e público eram crescentes até a chegada de Jair Bolsonaro ao governo. O crescimento resistiu aos primeiros anos de desgaste das políticas para o setor após o golpe de 2016. Isto é, era uma cadeia produtiva cada vez mais importante para a nossa economia e com um gigantismo simbólico em seus produtos.
Qualquer país com uma visão de desenvolvimento a incorporaria como uma área estratégica para o desenvolvimento. Nos recentes anos,o Brasil começou a se enxergar cada vez mais nas telas de cinema e, por conseguinte, consumimos cada vez mais nossas histórias, mas o mundo também começou a ver o país através das telas, alavancando a nossa produção de arte e cultura.
Aliás, o único ramo do mercado brasileiro de arte e cultura que ainda não é dominado pela produção nacional é justamente o de filmes e séries. Enquanto, na maioria dos países, a produção artística e cultural estadunidense é mais consumida em quase todas as áreas, por aqui só esse nicho é liderado por eles. Contudo, desde que o Brasil passou a ter uma produção estruturada nesse setor, a ocupação das produções nacionais ganhava espaço progressivamente no país e nos médio e longo prazos a participação estadunidense poderia ter uma competição sustentada da produção nacional.
É muito sabido e estudado que desde a década de 1930, ao menos, a produção cinematográfica faz parte de uma estratégia de projeção global dos Estados Unidos, de seus talentos, de sua criatividade e seus valores. Assim, é desinteressante por razões econômicas e geopolíticas que essa produção perca importância e espaço em qualquer lugar. Com a chegada do streaming, esse predomínio norte-americano também se aplica na difusão de conteúdo, com a maioria das plataformas sendo daquele país. As tentativas de regulamentação desse setor são bloqueadas desde 2016. O deputado Paulo Teixeira apresentou uma iniciativa para regulamentação do VOD – vídeo on demand – no país que sofre imensa oposição das plataformas, com lobby pesado pela manutenção da desregulamentação. Esse tema, aliás, poderia ser transposto para as plataformas de música, que praticamente não beneficiam os artistas. O governo de Michel Temer e o de Jair Bolsonaro atuaram e atuam para responder aos interesses estrangeiros nessa área e prolongar a desregulamentação que prejudica os nossos fazedores.
Enquanto os EUA têm uma política ofensiva nessa área, entendendo o quanto ela é estratégica – aliás uma tônica do país desde a Guerra Fria, há um livro interessantíssimo de Frances Saunders sobre o tema que recomendo –, por aqui os governos erigidos desde o golpe vêm entregando ao estrangeiro nosso mercado para o audiovisual, perdendo a oportunidade de uma projeção benéfica do país no mundo e de possibilitar que o nosso povo possa ver seus temas e dilemas nas telas com maior presença.
Faço essa menção à geopolítica para referendar a tese de que a cultura é um tema central e que deve estar no centro de qualquer projeto de desenvolvimento. Atualmente, ela é setor estratégico em todos os países centrais do capitalismo, bem como nos não-capitalistas de alto crescimento. Como o projeto de Bolsonaro é um projeto de destruição e recolonização nacional, ele trata de maltratar e asfixiar o setor cultural, buscando inviabilizar ao máximo a expansão da produção e a sobrevivência de artistas e cultores, indo na contramão do mundo e a favor do seu projeto regressivo. A própria lei Aldir Blanc, como sabemos, aconteceu apesar de Bolsonaro em um esforço do parlamento associado com os fazedores de cultura.
Aliás, a lei de autoria de Benedita da Silva encontra-se agora em necessidade absoluta de prorrogação dos seus prazos de execução e do uso dos recursos disponibilizados e o governo Bolsonaro não move uma palha em auxílio do setor. E isso não é à toa: como vimos, a guerra cultural é estruturante para a extrema-direita e seus interesses de perpetuação do poder.
A cultura, além de um vetor fundamental para o desenvolvimento econômico e social, constrói um povo, comunidades livres e tolerantes e atua de forma decisiva para evitar o florescimento de conflitos, da violência e do ódio
A visão mesquinha de Bolsonaro a respeito da cultura joga o país para baixo, aumentando a instabilidade e prejudicando dramaticamente nossas possibilidades de futuro. Uma vez que todos sabem que a economia da cultura e a indústria criativa são parte indispensável de qualquer política de geração de emprego, renda e crescimento econômico. Até o início da pandemia, de acordo com a UNESCO, tínhamos mais de 7,2 milhões de trabalhadores na área, mostrando sua importância econômica e para a geração de empregos sustentáveis – normalmente não considerada nesse aspecto. Desde o começo da pandemia, mais de 800 mil postos de trabalho foram perdidos na área. Aliás, o tema da empregabilidade e dos direitos trabalhistas dos trabalhadores da cultura se impõe como uma questão central para o país.
Países como a Coreia do Sul, o Reino Unido e a França planejam investimentos públicos maciços em cultura como uma de suas estratégias de retomada econômica e como forma de projeção no mundo pós-pandemia. No Reino Unido se fala em “new deal” para a arte, na Coreia do Sul o “k-pop” é visto como estratégico para a projeção do país, na França o governo Macron intenciona reativar a economia pós-pandemia com investimentos massivos em “criatividade”. A propósito, a saída para a retomada rápida de empregos e renda em quase todos os lugares, com governos à esquerda ou à direita, tem sido reativar os investimentos públicos em arte e cultura. O futuro dos empregos e do desenvolvimento passa, sem dúvidas, pela economia da cultura e por investimentos públicos vultuosos e consistentes na área.
Além disso, há o valor intangível, simbólico, que excede em muito qualquer resultado de outra ordem que o investimento em cultura possa ter. Mesmo que os resultados econômicos não fossem tão expressivos como são, o investimento público em cultura, pesado, se justificaria pela importância que o setor tem para a formação de comunidades democráticas, livres, vibrantes, cosmopolitas e que respeitam a diversidade. Ou seja, a cultura, além de um vetor fundamental para o desenvolvimento econômico e social, constrói um povo, comunidades livres e tolerantes e atua de forma decisiva para evitar o florescimento de conflitos, da violência e do ódio.
Portanto, é preciso combater a “guerra cultural” e para combatê-la precisamos compreender a que interesses ela serve para a extrema-direita. Ela é estratégica no projeto deles. Diante disso, há só uma saída para o setor cultural nesse momento de perseguição: mobilização intensa, nos meios possíveis diante da pandemia, para combater o autoritarismo bolsonarista, contando com a solidariedade dos demais movimentos sociais e políticos. Para o campo progressista, se torna evidente que é preciso englobar a cultura como um vetor político estruturante na construção de um projeto de desenvolvimento equitativo e sustentável que vem das bases, que busque reconstruir a nossa democracia, reunir o nosso povo ao redor de valores solidários e que intencione projetar o nosso país no mundo com aquilo que temos de melhor para oferecer: a diversidade e a criatividade da nossa gente. Defender a cultura hoje é garantir o nosso futuro amanhã.
Márcio Tavares é historiador, curador de arte e Secretário Nacional de Cultura do PT