Há pelo menos 132 anos o Brasil adia seu encontro com essa nação justa e solidária de que fala a Constituição Cidadã. A Abolição foi uma bela página de nossa história, fruto da primeira grande mobilização de massas, com reuniões, campanhas, debates e comícios que projetaram nomes como José do Patrocínio, Maria Firmina dos Reis, André Rebouças, Maria Tomásia Figueira Lima, Luiz Gama e muitos outros homens e mulheres que dedicaram suas vidas a acabar com um sistema escravocrata que, durante três séculos e meio, trouxe à ferro através do Oceano Atlântico mais 4,9 milhões de africanos. Os negros conquistaram a liberdade, mas era uma liberdade sem asas.
Em 1888, sob pressão, a elite brasileira deu os anéis para manter os dedos, mas cobrou um alto preço por isso. No ano seguinte, os antigos proprietários de escravos foram os principais incentivadores do golpe – sim, o golpismo está na genética da burguesia nacional – que derrubou a monarquia. E até hoje muitos herdeiros daqueles latifundiários continuam não medindo esforços para manter concentrada, na mão de poucos, a propriedade da terra e dos demais bens de produção em nosso país. Sem acesso à terra em um país agrário, sem acesso à educação e preterido enquanto mão-de-obra, tanto na lavoura quanto na nascente indústria, por levas de imigrantes europeus e asiáticos, os negros continuaram à margem da sociedade.
Este fenômeno de exclusão observado na abolição voltou a se manifestar, ao longo de nossa história, sempre diante de crises que exigem rupturas para superar os impasse políticos. A elite sempre se articula para circunscrever as mudanças aos marcos de seus interesses e privilégios. Assim vemos parte dos movimentos que hoje conclamam a formação de uma “frente ampla” contra o fascismo e por democracia. Apesar do nobre objetivo declarado de livrar-se de Bolsonaro, esses movimentos se calam diante da retirada de direitos trabalhistas e previdenciários, do desmonte do Estado e da entrega da nossa soberania.
Diante deste chamado à união pela democracia, cabe questionar que tipo de democracia. Será aquela com um modelo econômico que concentra riquezas e aumenta a miséria do negros e pobres? Será aquela na qual gorda fatia do orçamento será sempre reservada para financiar o aparato responsável por interromper a tiros, todos os anos, as vidas de milhares de jovens pretos e pobres?
Não podemos esquecer que muitos dos que articulam esses manifestos por democracia não tiveram qualquer pudor de, em passado recentíssimo, apoiar o golpe que derrubou uma presidente democraticamente eleita pelo povo e colocou em seu lugar um projeto de desmonte de direitos que ninguém elegeu. Taparam o nariz para que o fascismo pudesse fazer seu trabalho sujo e impedir a volta do projeto de poder popular e desenvolvimentista de Lula, Dilma e do PT. Mas não imaginaram que isso criaria uma atmosfera de ódio tão tóxico que ninguém mais, fora os próprios fascistas, hoje conseguissem respirar.
É claro, todos têm direito ao arrependimento. Não vamos negar ajuda de qualquer um que esteja de fato interessado em somar esforços na luta antifascista. Para que ninguém se engane, porém, hoje mais do que nunca é preciso reafirmar a democracia que queremos: aquela que tenha por objetivos a inclusão social, o combate a miséria, a geração de oportunidades, o fomento à cultura popular, a sustentabilidade ambiental, a aceitação da diversidade e a afirmação do nosso país de forma soberana no mundo.
Não podemos confundir quem é nosso principal inimigo – todos juntos contra os fascistas – mas como bem resumiu Lenin, poderemos golpear juntos, porém marcharemos separados.
Firme na luta!
Edson Santos foi ministro da Igualdade Racial no Governo Lula, ex-deputado federal pelo PT e vereador por cinco mandatos na cidade do Rio de Janeiro