“Na Pfizer, tá bem claro no contrato: nós não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral; se você virar um chimp virar um jacaré, é problema de você (sic)… —não vou falar outro bicho senão vão dizer que vou começar falar besteira—, ou se algum homem começar a falar fino”.
Bolsonaro, nessa reflexão, faz referência a possíveis metamorfoses que a vacina pode provocar. Por cautela, troca, de início, a palavra “chimp” por jacaré. Falsa cautela que não esconde a intenção, mas covardemente se protege, ao optar pela autocensura imposta (de fora), mas no fundo rejeitada.
Se começa mal, Bolsonaro faz questão de terminar escrachadamente pior, ao fazer menção a outro possível efeito colateral da vacina: afinar a voz dos homens.
Noutro dia, Bolsonaro fez referência ao tratamento da Covid com ozônio, que, segundo um correligionário seu, é aplicado pelo reto. Bolsonaro, perante apoiadores, ironizou a procura pelo tratamento. Afinou a voz e, sorrindo, disparou: “Estou com Covid, estou com Covid”.
As comparações entre Bolsonaro e Odorico Paraguaçu ganham destaque. As semelhanças do atual ministro do Turismo com Dirceu Borboleta acentuam as correspondências. Entretanto, como observou Eugênio Bucci, o carisma despudoradamente cômico do prefeito corrupto e truculento era o retrato da ditadura militar sisuda e burra que não se enxergava na ficção e, por consequência, não censurava a obra de Dias Gomes, para alegria do público.
Quando os polos entre ficção e realidade se invertem, o gênero literário também se transforma, da comédia para a tragédia. Na verdade, o fenômeno é mais complexo. Na ditadura, “os gêneros”, por assim dizer, estavam compartimentados, ou melhor, acomodados em distintas dimensões. Agora, tragédia e comédia estão reunidas na mesma pessoa, em busca de aprovação popular.
O humor que a isso se presta só pode ser aquele que reforça os estereótipos contra as vítimas históricas da selvageria brasileira. Não é o humor inteligente que ironiza a vilania dos poderosos. É a velha e sem graça piada racista, misógina, homofóbica, de classe, que busca legitimar pelo riso naturalizante a barbárie que nos assola.
A ironia da ficção era que, em Sucupira, algo líquido e certo como a morte não acontecia. O prefeito não conseguia inaugurar seu cemitério. O Odorico de hoje se insurge contra algo que era incerto, mas que apareceu surpreendentemente: a ciência nos ofereceu, em prazo recorde, não uma, mas várias vacinas contra o vírus letal.
Faltavam cadáveres em Sucupira, e era divertido. No Brasil de Bolsonaro, faltam caixões, e dá muita raiva.
Fernando Haddad é professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo.