O fato do valor do Produto Interno Bruto per capita de 2022 voltar a equivaler ao que era há oito anos expõe parte das debilidades atuais da economia brasileira. Mas diferentemente de outros momentos passados por grandes dificuldades internas, o país conta hoje com inédita oportunidade histórica externa. As reservas cambiais acumuladas pelos governos liderados pelo PT, totalizando hoje 346 bilhões de dólares, representam um inédito passaporte para o futuro.
Nem mesmo a dilapidação de US$ 65,8 bilhões ocorrido no governo anterior, sem que houvesse nenhum benefício tangível ao desenvolvimento nacional, foi capaz de destruir o que se conseguiu acumular até então. Desde janeiro de 2023, o Brasil retomou a trajetória de elevar as reservas externas. Em nenhum momento histórico anterior, o país desfrutou de tal situação favorável, permanecendo vivas na memória nacional, as agruras econômicas das décadas de 1970 a 1990 com as crises cambiais e da dívida externa. Isso ficou no passado.
Sob a liderança crescente do Brasil exercida pelo presidente Lula no âmbito do emergente Sul Global, o país se defronta com posição especial no interior do continente sul-americano frente à contínua geração externa de superávit comercial. Com isso, a possibilidade real da nação se transformar no novo centro regional do desenvolvimento diante do inédito mundo multipolar em construção.
Para desempenhar a estratégica função de estabilizador econômico, financeiro, político e militar sul-americano, decisões internas se apresentam fundamentais, para além das que já se encontram em curso no início do terceiro mandato presidencial. Neste sentido, três medidas que se implementadas colaborariam, em muito, com a definição do novo protagonismo brasileiro no mundo.
A primeira se refere à reformulação dos bancos públicos federais, especialmente o Banco do Brasil (BB) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), objetivando exercer o papel estratégico constitutivo do sistema Swift do Sul Global alternativo ao Norte Global. De um lado, a incorporação da função de trading do agronegócio brasileiro pelo BB, enquanto financiador da safra agrícola, e, de outro, a atribuição de fomento das exportações nacionais pelo BNDES. Uma trading será extremamente útil no comércio com os países vizinhos, bem como aqueles com intensa volatilidade cambial. A experiência da Interbras foi bastante exitosa até ser tristemente extinta no governo Collor (1990-1992).
Na função de trading, o BB compraria a produção agrícola diretamente dos produtores interessados, garantindo preço justo e estabilizador antes da safra. Construiria silagem de grande porte próxima aos produtores, barateando o custo da logística e da intermediação. Por ser o terceiro maior exportador de produtos agrícolas do mundo, a trading do Banco do Brasil poderia comercializar com grandes vantagens no mercado externo, interferindo diretamente na formação do preço internacional de algumas commodities em favor da nação e, por consequência, dos países do continente sul-americano.
Na atribuição financeira de um Eximbank, o BNDES impulsionaria as empresas interessadas na comercialização de seus produtos com outros países. Para superar o atraso interno e vencer o futuro, a difusão do crédito de exportação e importação permitiria preencher atuais lacunas existentes no financiamento do setor privado, contribuindo, assim, para a criação de empregos decentes compatíveis com a segurança e a prosperidade nacional.
Ao mesmo tempo, a atuação revigorada do BB e BNDES permitiria ao país agilizar rapidamente, também com segurança e precisão, as transações comerciais e financeiras por meio da oferta tecnológica dos serviços de informação e comunicação entre os distintos agentes do comércio externo, Se exercidas em moeda local, as transações comerciais e financeiras contariam com inédito sistema de compensação e contabilidade factível, inclusive ao conjunto dos países do Sul Global alternativo ao Swift do Norte Global.
A segunda medida contempla o melhor aproveitamento do potencial adquirido pela trajetória de especialização da produção e exportação agropecuária e mineral, providenciando a sua articulação e integração complexificadora do conjunto do sistema produtivo nacional. Nesse sentido, a função da própria trading do BB poderia comportar, por exemplo, a essência da profunda remodelização da matriz de transportes interno e externo.
Assim, a sustentabilidade ambiental avançaria pela nova mobilidade das pessoas nas cidades e das cargas por corredores de produção e exportação amparados por nova frota de trens, bondes e metrôs, bem como caminhões, aviões e navios graneleiros, petroleiros e de mineração produzidos internamente e com o amplo conteúdo nacional. Nada mais equivalente ao que já está em curso nos diversos países, sobretudo no Norte Global, o que permitiria reconstituir parte significativa do sistema nacional produtor de manufaturas, com indústrias de base, bens intermediários, de capital e de consumo durável.
Num mundo turbulento e prenhe de profundas transformações constitui uma temeridade o Brasil não dispor mais de uma marinha mercante própria, capaz de transportar os produtos do comércio externo aos países parceiros. Do contrário, prevalece a maior vulnerabilidade, gravando a balança de serviços com exorbitantes fretes às transportadoras estrangeiras. Ademais de ser um imperativo da segurança nacional, a construção da frota mercante possibilitará revigorar a necessária e importantíssima indústria naval no Brasil.
Da mesma forma, destaca-se a possibilidade de substituição das importações potencializadoras da produção interna e exportações da agropecuária e mineral nacional. Com isso, o potencial de reversão do fluxo financeiro de saída de recursos nacionais contemplaria superar a atual dependência externa.
Ao contemplar a internalização da produção de máquinas e equipamentos e também dos insumos em geral (sementes, adubos, fertilizantes químicos defensivos e outros) com o papel da trading do BB, o país pouparia o gasto com despesas externas relativas aos serviços de transportes e seguros, por exemplo. Da mesma forma, o sistema nacional de ciência e tecnologia pressuporia maior conexão com as exigências de protagonismo do novo desenvolvimento em marcha com o mundo multipolar, restringindo gastos com patentes e diversos serviços da Era Digital dependentes do exterior, seja civil, seja militar.
Assim, o modelo exportador brasileiro constituído há meio século galvanizaria atualidade da inédita relação com as necessidades internas de retomada do crescimento econômico em novas bases nacionais. A recuperação da participação de “tradings companies”, conforme prevista por legislação de 1972, ampliaria e aprofundaria as conexões possíveis do comércio externo com o sistema produtivo nacional, aprofundando a exitosa experiência passada da Interbrás como subsidiária da Petrobras (1976-1990).
A terceira medida corresponderia à implementação do Fundo Soberano, capaz de gerir a poupança pública nacional de longo prazo, distintamente da forma atual com que faz o Banco Central independente ao financiar o rentismo decorrente do endividamento interno e no externo. Ademais da experiência passada dos anos de 2008 a 2019, o novo Fundo Soberano trataria da gestão eficiente da riqueza soberana, reconfigurando as bases do padrão de financiamento do novo desenvolvimento brasileiro.
Para tanto, o necessário fomento de projetos estratégicos aos interesses nacionais. Ressalta-se ainda como exemplo, a recomposição das bases tecnológica e econômica sustentáveis do novo sistema produtivo, contemporâneo das exigências que emergem do novo desenvolvimento brasileiro diante da construção do protagonismo do Sul Global. As condições estão dadas ao país. A hora é agora, soltar as amarras do passado e içar velas rumo ao futuro. O Brasil pode muito mais.
* Marcio Pochmann é professor da Unicamp e presidente do Instituto Lula; Arlindo Falco Junior é engenheiro.
Originalmente publicado no portal Brasil 247.