Em meio à crise sanitária provocada pela Covid-19, economistas de todos os matizes deveriam examinar como a política econômica pode sobredeterminar as causas de morbimortalidade de uma sociedade.
David Stuckler e Sanjay Basu deram uma contribuição importante nesse sentido. No livro, publicado em 2013, intitulado The body economic. Why austerity kills, os autores criticaram, impetuosamente, os efeitos as políticas de austeridade fiscal sobre as condições de vida e saúde das populações.
Ora, se antes da pandemia esse quadro já era preocupante, quando assistimos no Brasil à morte de mais de 70 mil pessoas e a existência de mais de um 1,9 milhão de casos de Covid-19, não deixa de ser chocante constatar o subfinanciamento crônico do Sistema Único de Saúde (SUS), agravado pelo teto do gasto definido pela Emenda Constitucional nº 95 – EC 95.
Nós gastamos somente 3,8% do PIB com a rede pública de saúde, enquanto o sistema inglês, por exemplo, aplica 7,9%. De modo que, para enfrentar o novo coronavírus, a partir da introdução do decreto de calamidade pública e da Emenda Constitucional nº 106 – EC 106, o governo flexibilizou, temporariamente, o regime fiscal contracionista, financiando os gastos por meio de endividamento, agora permitido pela suspensão da regra de ouro, e pelo uso dos recursos desvinculados da Conta Única do Tesouro.[1] Apesar da ampliação do orçamento, vale assinalar a lentidão do governo na execução dos recursos da pandemia, especialmente na área de saúde, em que, até meados de julho, cerca de 70% dos valores não haviam sido pagos.
Os defensores da austeridade fiscal discordam da caracterização acima elaborada. Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, Marcos Mendes afirma que o teto de gasto não produziu impactos negativos sobre o financiamento dos serviços públicos, postulando, pasmem, que entre os anos de 2017 e 2019 o gasto na saúde foi R$ 9,3 bilhões maior em comparação com o modelo de financiamento do SUS vigente antes do teto.
Neste artigo, temos por objetivo refutar o argumento do colunista, fruto de erros ou omissões que maculam seu raciocínio, que está longe de perceber, apesar da recessão ora em curso, que a sustentabilidade fiscal do país e a mudança do padrão de financiamento do gasto social requerem uma reforma tributária progressiva com taxação da alta renda e do patrimônio.
Em nome da austeridade, [2] Mendes adota pressupostos questionáveis para abordar os efeitos do teto de gasto sobre o SUS. Da ótica dos direitos humanos, pedimos atenção e paciência do leitor para a leitura de aspetos técnicos desse debate, sem os quais poderia ficar obscurecido o absurdo que é defender, de forma velada ou não, a manutenção de políticas fiscais contracionistas para o período pós-pandemia.
1) a comparação entre as regras não utiliza, a rigor, o período em que o Novo Regime Fiscal passou a ser aplicado na saúde, considerando que o congelamento do piso se deu a partir de 2018.
A EC 95 deve ser avaliada em seus impactos sobre a saúde em relação ao congelamento das despesas primárias e do piso do setor. No último caso, os valores mínimos obrigatórios passaram a ser definidos como 15% da Receita Corrente Líquida (RCL) de 2017, mais o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de doze meses. Desse modo, o Novo Regime Fiscal passa a surtir efeitos específicos sobre a saúde em 2018, ano a partir do qual se pode calcular a diferença entre os valores aplicados em saúde e o mínimo obrigatório, conforme a regra anterior. Embora o autor tenha feito um exercício contrafactual, não nos parece lógico comparar os efeitos da EC 95 sobre a saúde a partir de 2017.
2) o gasto entre 2017 e 2019 é cotejado com o mínimo obrigatório anterior de forma equivocada, já que são utilizados percentuais da Receita Corrente Líquida inferiores ao determinado em liminar pelo ministro Ricardo Lewansdowski, do Supremo Tribunal Federal.
O artigo compara os valores aplicados com percentuais da RCL abaixo daqueles que estariam de fato vigentes. O suposto ganho de R$ 9,3 bilhões – produto da diferença entre a execução dos recursos nos anos de 2017 a 2019 e a regra de gasto mínimo anterior – é calculado contra os valores de 13,7% (2017), 14,1% (2018) e 14,5% (2019) da RCL. Tais valores eram previstos na emenda constitucional nº 86 – EC 86, de 2015, segundo a qual o piso da saúde seria escalonado até alcançar 15% da RCL em cinco anos. Todavia, o escalonamento foi tornado sem efeito por liminar do ministro Ricardo Lewandowski, de modo que, não fosse a EC 95, o piso da saúde seria 15% da RCL a partir de 2018.
3) o exame do gasto considerando a EC 95 e a regra anterior, que indexou a despesa à receita, não observa que houve redução das despesas como proporção da RCL entre 2017 e 2019.
Entre 2017 e 2019, os gastos de saúde passaram de 15,8% da RCL para 13,5% da RCL. Isto é, uma queda de 2,3 p.p. nas despesas do SUS como proporção da RCL, produto do congelamento em termos reais do piso de aplicação do setor. O sentido do congelamento é justamente evitar alocação adicional de recursos no setor em razão de eventual ganho de arrecadação.
4) a tese favorável à EC 95 é frágil, uma vez que, diante da pandemia do novo coronavírus, as despesas extraordinárias cresceram em função da suspensão das regras fiscais, isto é, elas cresceram “por fora” e não em razão da vigência do teto de gasto.
Houve ampliação das despesas primárias ao longo do exercício de 2020, especialmente após o reconhecimento do estado de calamidade pelo Congresso e a promulgação da EC 106, de 2020, que criou um orçamento paralelo com gastos temporários para o enfrentamento da pandemia. Desse modo, o crescimento das despesas só foi possível diante da suspensão das regras fiscais (regra de ouro e meta de resultado primário) e da não contabilização dos créditos extraordinários no teto de gastos. Vale dizer, além da queda da receita em função dos efeitos econômicos da pandemia, a expansão dos gastos se deu por fora das regras fiscais, não sendo razoável computá-la como efeito de tais regras, especialmente do teto.
5) a estimativa da perda do SUS foi de R$ 22,5 bilhões entre 2018 e 2020.
De acordo com o princípio da vedação de retrocesso, a partir da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5595, que ganhou liminar no STF, o piso não pode ser reduzido com a mudança da regra constitucional. Desse modo, as perdas para o SUS foram de R$ 3,98 bilhões e R$ 13,58 bilhões, respectivamente, em 2018 e 2019, considerando a diferença entre valores executados e o mínimo obrigatório (15% RCL).[3] Para 2020, a comparação entre os gastos de saúde e o piso de 15% da EC 86 deve ser elaborada levando-se em conta os valores previstos de despesa e receita na Lei Orçamentária Anual (LOA), aprovada pelo Congresso Nacional. Afinal, trata-se de ano atípico em que a pandemia aprofundou a crise econômica, afetando a arrecadação (redução) e as despesas (aumento). Nesse sentido, os recursos autorizados estariam quase R$ 5 bilhões abaixo do valor previsto para o piso anterior, estimando-se, entre 2018 e 2020, uma perda para o SUS de R$ 22,5 bilhões.
Outro tema não abordado pelo autor é o impacto da retomada das regras fiscais a partir de 2021 sobre o SUS.
O Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) declara o teto de gastos como âncora fiscal para o próximo exercício. Se a proposta orçamentária do governo federal para a saúde for encaminhada mantendo o piso congelado da EC 95, o setor perderá R$ 35 bilhões em relação aos valores até aqui autorizados em 2020.
Essa redução teria efeitos drásticos sobre as condições de vida e saúde da população, porque, além dos efeitos diretos da COVID-19, o SUS será pressionado em 2021 pelo aumento do desemprego, queda da renda e procedimentos represados durante a pandemia.
Neste cenário, as despesas de saúde seriam impactadas, pois não há como ampliá-las sem o prejuízo de outras áreas, que sofreriam cortes e já são afetadas pelo teto: a redução de despesas discricionárias de outros órgãos tenderia a levar a uma paralisia da máquina pública, a ponto da Instituição Fiscal Independente já ter se manifestado sobre a possibilidade do teto estourar.
Tendo em mente o imperativo de salvar vidas, se não bastasse o recente aumento da pobreza, da desigualdade e do desemprego que, a um só tempo, num círculo vicioso, pioram a situação epidemiológica e pressionam a demanda por serviços públicos de saúde, o artigo de Mendes definitivamente não contribui para o combate à Covid-19, tampouco para o debate sobre as mudanças necessárias do regime fiscal com vistas ao financiamento do SUS.
Bruno Moretti é economista pela UFF, mestre em Economia pela UFRJ, doutor e pós-doutor em Sociologia pela UnB.
Francisco Funcia é professor da USCS e consultor técnico do Conselho Nacional de Saúde – CNS.
Carlos Ocké é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.
Artigo originalmente publicado no site Le France Diplomatique Brasil.