Em junho de 1978, o jornal Em Tempo lançou o que, aos olhos da História, é uma das suas mais importantes edições. O periódico de esquerda estampou na capa da edição de número 17 a bombástica denúncia, até então não publicada por jornal algum do país, que revelava uma lista de 233 torturadores da ditadura militar.
A iniciativa de revelar os nomes foi obra de 35 presos políticos e listava os responsáveis pelas atrocidades que sofreram e testemunharam entre 1969 e 1975. Por quase 3 anos, a lista permaneceu inédita no Brasil, até que o Em Tempo resolveu publicá-la, às vésperas do julgamento do processo movido pela família de Vladimir Herzog, morto nas dependências do exército, contra o governo.
Encabeçada por Carlos Alberto Brilhante Ustra, o “listão dos 233” era acompanhado de um contundente documento político que listava detalhadamente mais de 20 métodos e instrumentos de tortura diferentes e relatava 16 assassinatos de presos políticos sob custódia do regime, além de enumerar 19 casos de “desaparecidos políticos”.
Inicialmente, o documento foi endereçado ao presidente do Conselho Federal da OAB, que havia declarado, em entrevista à Folha de SP, a dificuldade de obter relatos concretos que fundamentassem uma denúncia. A “ajuda” elaborada pelo grupo de presos – integrado por José Genoino, Aton Fon Filho, Hamilton Pereira e Paulo Vannuchi, entre outros – continha tamanha riqueza de detalhes dos tratamentos hediondos – e ilegais até nas leis de exceção da ditadura – que, até hoje, torna a sua leitura profundamente impactante.
O “listão dos 233” assombra até hoje porque é justamente a partir da rede repressiva montada ao arrepio da lei, mas completamente integrada ao governo militar, que tentáculos vigorosos do crime organizado prosperaram no Brasil. Grupos de extermínio, milícias e a estruturação mafiosa do jogo do bicho, por exemplo, são um “legado às avessas” da anistia “ampla, geral e irrestrita”: militares de papel destacado no aparato de repressão, tortura e morte, ao perderem sua “função social”, passaram a dedicar-se inteiramente às atividades criminosas, muitas delas toleradas pelas Forças Armadas.
Quatro décadas depois, um herdeiro político dos porões da ditadura tornou-se presidente do Brasil. Uma liderança política de tradição fascista e que ousou dizer, em rede nacional, ainda durante a campanha eleitoral, que tinha como ídolo justamente o número 1 da lista de criminosos publicada pelo Em Tempo: o coronel Brilhante Ustra. Um político de vínculos já expostos com grupos de extermínio e milícias, cujo governo é assombrado pelas ligações entre o mandato parlamentar de seu filho mais velho e os assassinos da vereadora Marielle Franco, imbuído do desejo de resgatar a “obra inacabada” da ditadura: o extermínio da esquerda.
A ousadia de Bolsonaro é inédita na sua envergadura e enrubesce até a caserna: após elogiar publicamente o general paraguaio Alfredo Stroessner, ditador do país vizinho por quase 35 anos, denunciado por corrupção e pedofilia, responsável por um regime que torturou mais de 18 mil pessoas e assassinou mais de 400 e que concedeu asilo político para membros do Partido Nazista, o presidente orientou a realização de atos comemorativos do golpe militar de 31 de março de 1964 em todos os quartéis.
A tentativa delinquente de reescrever na marra as páginas do período é tenebrosa e só ocorre porque, até hoje, os crimes da ditadura não foram punidos. O Brasil, ao contrário de Chile, Uruguai e Argentina, nunca passou a limpo a ditadura como deveria. O STF ratificou o entendimento de “autoanistia” do governo militar, impedindo o julgamento dos crimes do regime e varrendo o entulho autoritário e ilegal para debaixo do tapete, e o contundente relatório da Comissão Nacional da Verdade não teve a consequência esperada. O resultado concreto é que não houve um amplo debate público e tomada de consciência coletiva dos horrores do golpe, permitindo que setores fascistas – agora com aval e incentivo presidencial – celebrem o que deveria ser motivo de vergonha nacional.
Passados quase 41 anos, resgatar a edição 17 do Em Tempo é mais do que um trabalho de reconstrução da memória histórica e de homenagem às vítimas do golpe militar; é um ato político contra a nova ordem que o presidente Bolsonaro pretende estabelecer. Enfrentar a releitura criminosa do discurso presidencial, escancarar os horrores da ditadura, denunciar os bandidos reverenciados como heróis pelo capitão-presidente, trazer para o centro do debate as milícias e os grupos de extermínio germinados nos porões de um regime autoritário, corrupto e assassino e suas ligações perigosas com a família Bolsonaro é urgente, antes que o horror se reestabeleça como banal.
*Leia a reportagem do jornal Em Tempo na íntegra
Bernardo Cotrim é jornalista e militante da Democracia Socialista