Ex-vice-presidente dos Estados Unidos, o candidato democrata e favorito à Casa Branca Joe Biden tem sido um crítico intransigente da política ambiental do Brasil. No único debate realizado na televisão americana, há 15 dias, ele anunciou que pretende cobrar do governo de Jair Bolsonaro medidas consistentes para reverter o desmatamento e a queima das florestas da Amazônia. Caso seja eleito presidente em novembro, Biden sinalizou que pode vir a impor sanções econômicas ao Brasil pela destruição das florestas tropicais. O tema, espinhoso, não é o único em que a Casa Branca e o Palácio do Planalto podem se ver em posições opostas. Outro ponto fundamental é a política de direitos humanos.
Enquanto Jair Bolsonaro exalta a ditadura, posa com armas e elogia torturadores, como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, a quem citou ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff, uma das muitas vítimas que sofreram de abusos físicos do sádico militar, Joe Biden é um entusiasta dos direitos humanos. O tema deve ganhar força na agenda do democrata, caso seja eleito presidente dos Estados Unidos, e será tocado de maneira incisiva pela Casa Branca, numa eventual administração de Biden, de acordo com assessores da campanha do candidato.
Reportagem da BBC, publicada nesta sexta-feira, 9 de outubro, relembra que, em junho de 2014, Joe Biden desceu em Brasília com um disco rígido de computador repleto de documentos secretos liberados pela Casa Branca, compilados pela Embaixada dos EUA, entre 1967 e 1977, com relatos estarrecedores de torturas, censura e assassinatos cometidos pelo regime militar. A entrega do material, feita pessoalmente por Biden, em nome do presidente Barack Obama, tinha como objetivo desfazer o mal-estar pelo grampo de conversas e interceptações realizadas pela NSA no gabinete de Dilma, reveladas por Edward Snowden, inclusive sobre a espalhafatosa espionagem feita na Petrobras.
Em 17 de junho, Dilma recebia Biden no Planalto. “Estou feliz de anunciar que os Estados Unidos iniciaram um projeto especial para desclassificar e compartilhar com a Comissão Nacional da Verdade documentos que podem lançar luz sobre essa ditadura de 21 anos, o que é, obviamente, de grande interesse da presidente”, afirmou Biden, sorridente, ao lado de Dilma. Sobre a espionagem realizada contra o Brasil, o então vice-presidente foi polido e protocolar, mas tentou desfazer a situação embaraçosa.
“A presidente Rousseff e eu tivemos a chance de ter uma conversa franca e eu disse o que ela já sabia, que o presidente Obama pediu uma revisão imediata depois que soubemos das revelações e, baseados nas suas instruções, fizemos mudanças reais no nosso processo e estamos adotando uma nova abordagem nessas questões. Continuaremos fazendo consultas próximas a nossos amigos e parceiros, como o Brasil conforme as coisas procedem”, disse Biden em declaração à imprensa na embaixada dos EUA.
Os documentos encaminhados por Biden engrossaram o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, que relatou as violações aos direitos humanos cometidos entre 1946 e 1988, especialmente na ditadura militar, de 1964 a 1985. A divulgação ocorreu em 10 de dezembro de 2014, data em que se celebra o Dia Internacional dos Direitos Humanos, quando Dilma já havia sido reeleita para o segundo mandato como presidenta da República. “Estou certa de que os trabalhos produzidos pela comissão resultam do esforço pela procura da verdade, respeito da verdade histórica e estímulo da reconciliação do país consigo mesmo, por meio da verdade e do conhecimento”, declarou Dilma.
Na entrega do relatório, a presidenta se comoveu e chorou, emocionada ao citar a dor das famílias que perderam seus filhos e pais naquele período da história, pela ação criminosa de agentes do Estado brasileiro.“A verdade faz com que agora tudo possa ser dito, explicado e sabido. A verdade significa a oportunidade de fazer o encontro de nós mesmos com nossa história e do povo com a sua história”, disse a presidenta. “Mereciam a verdade aqueles que continuam sofrendo como se morressem de novo, e sempre, a cada dia”.
O relatório cita, pela primeira vez, os nomes de 377 agentes do Estado, pelo menos 190 deles ainda vivos, acusados de crimes contra os direitos humanos no período, para os quais pede punição – ou seja, que para eles não valha a Lei da Anistia, de 1979. O documento lista 434 vítimas dos crimes cometidos pelo Estado. Há ainda a relação dos locais onde ocorriam as sessões de interrogatórios forçados, prisões ilegais e desaparecimentos forçados. O documento detalha, além dos métodos de tortura, execuções e a ocultação de cadáveres. A íntegra dos três volumes, com mais de 2 mil páginas, está disponível no site oficial da comissão.
Técnicas de tortura
Entre os documentos entregues por Biden, há relatados detalhados das técnicas de tortura adotadas pelos militares nos porões dos órgãos de repressão, inclusive com estimativas de quantos opositores ao regime foram vítimas. Um telegrama da Embaixada dos EUA, em julho de 1972, diz que em resposta aos questionamentos da existência de tortura no país, feita por congressistas, aponta que a violência física contra brasileiros que faziam oposição à ditadura, ocorreu com frequência entre 1968 e 1969 e permaneceu entre 1970 até meados de 1971.
Mas o telegrama também confirma que o governo americano, presidido naquele momento por Richard Nixon, era franca e abertamente a favor do regime militar. A comunicação do embaixador americano William Rountree (reproduzida abaixo), de julho de 1972, mostra o alerta dele ao Departamento de Estado sobre evitar críticas contra o que o diplomata qualificava como “excessos” cometidos contra os direitos humanos pelos militares, alegando que as críticas poderiam “prejudicar nossas relações gerais”, o que não seria bom naquele momento.
Outros documentos, contudo, mostram bem mais do que a preocupação dos diplomatas, e trazem relatos fidedignos do que ocorria nos porões do DOI-CODI, OBAN, DOPS e do próprio Exército. Um relatório chega a descrever os maus tratos em detalhes a opositores do regime. O trecho é explícito: “Ele é colocado nu, em uma pequena sala escura com um chão metálico, que conduz correntes elétricas. Os choques elétricos, embora alegadamente de baixa intensidade, são constantes e eventualmente se tornam insuportáveis. O suspeito é mantido nessa sala por muitas horas. O resultado é extrema exaustão mental e física, especialmente se a pessoa é mantida nesse tratamento por dois ou três dias. Em todo esse período, ele não recebe comida nem água”.
O trecho do documento de sete páginas enviado pelo consulado americano do Rio de Janeiro ao Departamento de Estado, em 1973, foi um dos 43 trazidos por Biden em sua visita a Brasília, há seis anos. O telegrama informa que 126 pessoas teriam passado pelo mesmo tratamento, além de outras formas de sevícias, como o “pau de arara”. O informe é feito não só com base em depoimentos de vítimas, mas de informantes militares, cujas identidades aparecem protegidas por trechos apagados no documento.
Sobre a Comissão Nacional da Verdade e as revelações da prática de tortura, o presidente Jair Bolsonaro sempre desdenhou das denúncias de tortura. Em julho do ano passado, após atacar à memória do pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, ele desqualificou os estudos feitos pela comissão. “Você acredita em Comissão da Verdade? Qual foi a composição? Os sete membros foram indicados por quem? Pela [ex-presidente] Dilma”, disse. O desrespeito de Bolsonaro à memória das vítimas da tortura ficou patente.
A Comissão Nacional da Verdade foi criada por Dilma, que convidou brasileiros de notória especialização e reputação, como o ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles, o ex-ministro do STJ Gilson Dipp, o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, o advogado pernambucano José Paulo Cavalcante Filho, a psicóloga Maria Rita Kehl, o ex-secretário Nacional de Direitos Humanos Paulo Sérgio Pinheiro, além da advogada Rosa Maria Cardoso da Cunha.
Da Redação