A metralhadora do presidente girou em torno da derrocada econômica e do auxílio emergencial nesta terça (29). Logo no início da manhã, Jair Bolsonaro correu ao Twitter para declarar que o benefício concedido a trabalhadores informais e inscritos no Bolsa Família não será eterno. “O auxílio emergencial, infelizmente para os demagogos e comunistas, não pode ser para sempre”, afirmou, sempre mirando inimigos para alimentar o imaginário odioso que impregna suas redes sociais.
Logo depois, enquanto comentava a alta do desemprego com apoiadores, na entrada do Palácio da Alvorada, voltou a provocar, afirmando que a esquerda pode se aproveitar dos “problemas sociais gravíssimos para incendiar o Brasil”. Segundo as projeções do próprio presidente, 20 milhões de pessoas estarão sem renda a partir de 2021, entre moradores de rua, trabalhadores informais e beneficiários do Bolsa Família.
Como quem não tem a mínima responsabilidade pela tragédia sanitária, social e econômica brasileira, o sujeito eleito para governar o país eximiu-se da responsabilidade pela queda na renda de trabalhadores e trabalhadoras, recorrendo à velha história de que “chegou a fatura” do discurso do “fique em casa, a economia a gente vê depois”, por causa do novo coronavírus.
Como a mágica da melhora temporária na renda devido ao auxílio emergencial vai acabar, pelo menos 13 milhões de pessoas voltarão para as faixas mais pobres. Elas devem voltar para o estrato mais baixo já ao longo deste ano
Na verdade, as provocações vazias de Bolsonaro servem mais uma vez como cortinas de fumaça para camuflar as más notícias do dia – neste caso, para os 67 milhões de brasileiros e brasileiras beneficiárias do auxílio. A começar pelas quatro parcelas da extensão do auxílio, que começam a ser pagas nesta quarta (30).
Segundo dados do Ministério da Cidadania, excluindo o público do Bolsa Família (19,2 milhões) do total de beneficiários do auxílio emergencial (67,2 milhões), 48 milhões de pessoas que não recebem o Bolsa Família foram aprovados para esta nova fase do benefício. Mas apenas 56,25% delas receberão o total de parcelas.
“Serão 27 milhões de pessoas que receberão R$ 300 ou R$ 600 (no caso de mães monoparentais), o que totaliza um investimento do governo federal de mais de R$ 9 bilhões”, afirmou o ministério em nota.
Ao anunciar a prorrogação do benefício, o governo incluiu novas regras que restringiram a participação e consequentemente, reduziram o número de beneficiários. Dessa forma, apenas os beneficiários que receberam a primeira parcela de R$ 600 em abril terão direito a quatro parcelas de R$ 300. Quem recebeu a primeira parcela de R$ 600 em julho, por exemplo, terá direito a apenas uma parcela de R$ 300. E os trabalhadores só começam a receber as cotas do novo valor após receberem a última parcela de R$ 600.
Além disso, as regras relativas ao quantitativo de cotas para cada família também foram ajustadas. O recebimento do auxílio será agora limitado a “duas cotas por família”. Na lei original do auxílio, o recebimento do benefício era limitado a “dois membros da mesma família”. A mãe solteira continua com direito a receber duas cotas, mas na prática receberá apenas uma, caso outra pessoa elegível ao benefício seja da mesma família.
Quem está no cadastro do Bolsa Família voltará a receber o que tem direito pelo programa. Caso esse valor seja menor que R$ 300, apenas a diferença é que será paga via auxílio. Nos cinco meses iniciais do programa, os beneficiários do Bolsa Família recebiam o auxílio integral.
Todo mês também será feita uma revisão dos beneficiários das novas parcelas. Dessa maneira, esse grupo de 27 milhões de aprovados para receber a primeira cota de R$ 300 será reavaliado antes de receber a segunda parcela.
Única renda para mais de 4 milhões de domicílios
O resultado da queda do valor do auxílio e da restrição do número de beneficiários será o retorno de pelo menos 13,1 milhões de trabalhadores às faixas de renda D e E, formadas por famílias com renda mensal de até R$ 2,5 mil. Em julho, esse contingente havia saído do grupo das pessoas com renda per capita inferior a meio salário mínimo (R$ 552), movidas principalmente pelo auxílio de R$ 600.
“Como a mágica da melhora temporária na renda devido ao auxílio emergencial vai acabar, pelo menos 13 milhões de pessoas voltarão para as faixas mais pobres. Elas devem voltar para o estrato mais baixo já ao longo deste ano”, aposta o diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV Social), Marcelo Neri, ao ‘Correio Braziliense’.
No caso de perder sua principal fonte de renda, 78% dos lares, em média, não cobririam seu custo de vida durante três meses
Nesta terça, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou pesquisa apontando que, em agosto, cerca de 4,2 milhões de domicílios brasileiros tiveram como única fonte de renda o auxílio emergencial. Segundo o levantamento, o Nordeste foi a região com a maior proporção de domicílios nessa situação. Na série do Ipea, em julho, 4,4 milhões (6,5%) de domicílios brasileiros sobreviveram apenas com a renda do auxílio.
O Ipea apontou que a ajuda financeira foi suficiente para superar em 41% a perda da massa salarial entre as pessoas que permaneceram ocupadas em agosto. Entre os domicílios mais pobres, no entanto, a alta na renda habitual no mês foi de 132% do que teria sido sem o recebimento do auxílio.
O autor da pesquisa, Sandro Sacchet, comentou que “o papel do auxílio emergencial na compensação da renda perdida em virtude da pandemia foi proporcionalmente maior do que no mês anterior”. Na comparação com julho, de modo geral, os trabalhadores receberam em agosto 89,4% dos rendimentos habituais (2,3 pontos percentuais acima de julho) – R$ 2.132 em média, contra uma renda habitual de R$ 2.384.
Já os trabalhadores do setor privado sem carteira assinada receberam 86,1% do habitual (contra 85% no mês anterior). Trabalhadores do setor privado com carteira e funcionários públicos continuaram a obter, em média, mais de 94% do rendimento habitual.
O Ipea destacou que a recuperação do nível de renda foi maior entre os trabalhadores por conta própria, que receberam em agosto 76% do que habitualmente recebiam, contra 72% em julho, alcançando rendimentos efetivos médios de R$ 1.486. “Ainda que tenham recuperado parcela mais significativa da perda salarial devida à pandemia, os conta-própria continuam tendo um dos menores índices de renda efetiva”, enfatizou o estudo.
Mais pobres não resistem a três meses sem renda
Enquanto nos Estados Unidos quase 50% dos lares conseguem se manter por até seis meses, o percentual cai para 5,5% no Equador e Paraguai, para 7% na Argentina, Peru e Colômbia e 14% no Brasil e Chile. Os dados são do relatório ‘Vulnerabilidade financeira dos lares perante a Covid-19: uma perspectiva global’, desenvolvido pelo BBVA Research. “No caso de perder sua principal fonte de renda, 78% dos lares, em média, não cobririam seu custo de vida durante três meses”, adverte o relatório.
“Entre as certezas que já se têm está que os confinamentos decretados nos últimos meses levaram muita gente a perder seu emprego ou a ter que reduzir suas horas de trabalho. Isto implica o desaparecimento ou redução de sua renda, com o consequente impacto na economia e no bem-estar das famílias”, afirma o relatório, que analisa a capacidade dos lares para continuar mantendo o nível de gasto diante da perda de renda. O resultado, segundo os pesquisadores, permitirá abordar medidas que ajudem a mitigar a deterioração no bem-estar ou a ampliação da lacuna de desigualdade.
O resultado da pesquisa destaca a enorme disparidade que a pandemia causou entre economias desenvolvidas e em vias de desenvolvimento. Em países como os Estados Unidos, Canadá e os europeus, quase 40% das famílias são capazes de subsistir sem renda por mais de meio ano. Quando o período é reduzido a três meses, a proporção média aumenta para metade das famílias.
A situação muda dramaticamente nos países emergentes, sobretudo na América Latina. “Os dados do relatório sugerem que existe uma relação direta entre vulnerabilidade financeira e desenvolvimento econômico do país. Nos países emergentes do estudo (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Rússia e África do Sul) pouco mais de 10% das unidades familiares suportam mais de seis meses”.
“Os níveis de resiliência financeira frente às medidas de confinamento decorrentes da pandemia são, portanto, significativamente menores nestas economias”, adverte o relatório. Além disso, em geral, depois do desconfinamento gradual na região, uma parte importante das famílias não recuperou seu nível de renda anterior à pandemia.
Da Redação