Uma das principais bandeiras de Jair Bolsonaro desde o tempo em que era deputado federal, e promessa da campanha a presidente, a mineração em terras indígenas está entre os 35 projetos de lei considerados “prioritários” na lista enviada aos presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, na semana passada.
Assinado pelo ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, e pelo então titular da Justiça Sérgio Moro, o PL 191/2020 autoriza, além da mineração e do garimpo, projetos de petróleo e gás, construção de hidrelétricas, pecuária e plantio de sementes transgênicas em terras indígenas. Os povos tradicionais não terão poder de veto e a consulta prévia será mera formalidade.
Da lista antivida também constam o PL 3729/2004, que facilita o licenciamento ambiental, e o PL 2633/2020, da “Regularização fundiária”, conhecido como “PL da Grilagem”. Bolsonaro conta com a atuação dos aliados para finalmente “destravar a porteira” e “passar a boiada” por cima dos direitos dos povos indígenas. Como recomendou o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, na reunião de abril de 2020.
No dia da posse de Lira e Pacheco, o presidente da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), deputado federal Sérgio Souza (MDB-PR), comemorou afirmando que agora há “uma grande convergência, da vontade e unicidade”. Para ele, a bancada ruralista de 260 deputados passará pelo “melhor momento”, pois tem em Lira “um grande aliado” – inclusive para permitir a exploração comercial em terras indígenas.
O otimismo de Bolsonaro e Souza tem fundamento. Segundo o ‘Observatório da Mineração’, na campanha para deputado federal de 2014, a última com doação direta de empresas, Arthur Lira recebeu R$ 200 mil da Rico Táxi Aéreo. Foi um dos maiores valores recebidos por ele. Fundada por Munur Yurtsever, o “Comandante Mickey”, nos anos 60, a Rico Táxi Aéreo serve por décadas a garimpeiros na Amazônia Legal.
Lira viajou diversas vezes pelo Brasil em jatinhos da Rico durante sua campanha pela presidência da Câmara. Tanto o deputado quanto a empresa são alvos de investigações por corrupção e lavagem de dinheiro. Conforme o ‘Congresso em Foco’, Lira responde a oito investigações no total – cinco no Supremo Tribunal Federal (STF). A empresa também é investigada em outra operação da Polícia Federal contra desvio de recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) no Amazonas.
Ministérios têm portas abertas para os lobistas do garimpo
Outro interlocutor privilegiado de Bolsonaro junto à mineração é o vice-presidente Hamilton Mourão. Por diversas vezes ele recebeu em seu gabinete José Altino Machado, fundador da União Nacional dos Garimpeiros e presidente da Fundação Instituto de Meio Ambiente e Migração da Amazônia (Finama), e Dirceu Frederico dos Santos Sobrinho, presidente da Associação Nacional do Ouro (Anoro).
Em julho de 2019, quando o PL 191 começava a ganhar forma, Mourão se reuniu com Machado e o deputado federal Euclydes Pettersen (PSC-MG). Na ocasião, o ‘Diário do Rio Doce’ registrou a proximidade entre os dois. “Quando ele me reconheceu, a reunião durou mais ainda”, assinalou o líder garimpeiro, suspeito de vários crimes contra povos indígenas desde os anos 1980.
Em setembro de 2019, Machado participou de uma audiência na Câmara ao lado de Alexandre Vidigal, do Ministério de Minas e Energia (MME), Eduardo Leão, da Agência Nacional de Mineração (ANM), e Dirceu Sobrinho, da Anoro.
No mesmo mês, Machado e Sobrinho se reuniram também com Ricardo Salles, o general chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, e o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. Em junho de 2020, Mourão, Machado, Sobrinho e Pettersen se reuniram novamente em Brasília.
O presidente da Anoro é empresário de garimpo e agente financeiro acusado de lavagem de dinheiro e danos ambientais em Itaituba (PA). Ele e lobistas da região estão sempre em Brasília. Normalmente recepcionados pelo MME, eles têm interesse direto na liberação da mineração em Florestas Nacionais, que o MME recomenda e pede.
Desde o primeiro mês de desgoverno, Bolsonaro reitera seu compromisso com o setor. Em janeiro de 2019, uma Medida Provisória (MP) transferiu para o Ministério da Agricultura (MAPA) a atribuição de demarcar terras indígenas. A proposta foi alterada no Congresso, que restituiu a função para a Fundação Nacional do Índio (Funai).
Bolsonaro editou em junho uma nova medida, transferindo novamente para o MAPA a responsabilidade. Dias depois, o ministro do STF Luís Roberto Barroso concedeu liminar suspendendo o trecho. Na época, o então ministro Celso de Mello disse que a MP de Bolsonaro revelara um comportamento que transgride a Constituição.
No dia seguinte, Bolsonaro comentou: “falha minha”. Mas afirmou que insistiria. “Legalizar o garimpo é intenção minha, inclusive para índio. Tem que ter o direito de explorar o garimpo na tua propriedade. A terra indígena é como se fosse propriedade dele”, disse. Em novembro de 2019, ele garantiu a garimpeiros na porta do Palácio da Alvorada que pretendia transferir a atribuição de conceder lavras de garimpo para o MME. Atualmente, a responsabilidade é da ANM.
Há um ano, em 5 de fevereiro, Bolsonaro assinou o PL 191, na cerimônia pelos 400 dias de governo. Em discurso, se referiu à regulamentação como um “sonho” e disse que o índio “é tão brasileiro quanto nós.” Também ironizou ambientalistas e confessou que, se pudesse, confinaria o “pessoal do meio ambiente” na Amazônia.
Mercado ditou metas para a mineração
O governo, que trabalhara por meses no PL 191, avançou mais quadras no relacionamento com as mineradoras lançando o Programa Mineração e Desenvolvimento (PMD), em setembro de 2020.
Documentos obtidos pelo ‘Observatório da Mineração’ via Lei de Acesso à Informação revelam que entre as consultas feitas a entidades do setor para definir as 110 metas finais do PMD, está a adoção, por exemplo, da liberação da mineração em terras indígenas. A sugestão foi feita pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa Mineral (ABPM).
Em quatro anos, a expectativa era ter pelo menos oito terras indígenas disponíveis, afirmou a entidade para o MME. A entidade também solicitou R$ 200 milhões em incentivos fiscais para a pesquisa mineral no período. Nesse caso, o PMD fala somente em “promover a adoção de mecanismos de financiamento para atividades de pesquisa e produção mineral”.
Segundo o MME, em resposta ao ‘Observatório’, “após a análise acurada e pontual das contribuições oferecidas ao PMD, observado e mantido o objetivo principal de definir as diretrizes para o setor mineral brasileiro” para os próximos anos, “chegou-se ao texto definitivo do PMD – 2020-2023”.
Nenhum movimento social, organização da sociedade civil ou associação que represente comunidades atingidas pela mineração e povos indígenas foi ouvido pelo MME. Também não foi feita consulta pública. Esse é um vício estrutural do próprio ministério, avalia Bruno Milanez, doutor em política ambiental e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
“Os recursos minerais não são bens das mineradoras, mas da União. Toda a sociedade deveria ser ouvida para definir se e quando o recurso pode ser extraído. Tem um viés claro na forma como o MME escolhe esses interlocutores e isso vai contra o que se esperaria de um órgão de Estado como a função de ouvir a sociedade”, criticou.
Repúdio de entidades indígenas e da sociedade
Quando foi encaminhado ao Congresso o PL 191 recebeu o repúdio das principais organizações indígenas do país, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). A Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR/MPF) também “manifestou preocupação” com as consequências do PL.
Em agosto de 2019, uma pesquisa do instituto Datafolha contratado pelo Instituto Socioambiental (ISA) mostrou que a rejeição à entrada de empresas de exploração nas reservas indígenas é de, no mínimo, 80% em todas as regiões, escolaridades, idades, sexos, faixas de renda e ocupações. Em média, a atividade foi rejeitada por 86% dos entrevistados. Em resposta, Bolsonaro disse que a rejeição estimada “pode ser compatível” com a realidade e que havia “incompreensão sobre o que é um garimpo”.
Márcio Santilli, sócio-fundador do ISA e ex-presidente da Funai, afirma que os interesses do garimpo movem o PL 191. “Embora o projeto envolva vários interesses, é o garimpo que está liderando e investindo pesado na sua aprovação. Esse projeto de lei legaliza o garimpo ilegal, autoriza os crimes que já acontecem dentro de terras indígenas e tenta passar por cima da Constituição”, diz Santilli.
A tendência, avalia, é que esse PL vá parar no STF e a disputa no Congresso será acirrada. “Mesmo que o interesse orgânico do garimpo seja prioritário dentro do Congresso, só é possível legalizar o garimpo destruindo a Constituição”, concluiu Santilli.
Nessa disputa, a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas deve ter papel importante. Lançada em abril de 2019, a frente reúne 210 deputados federais e 27 senadores de vários partidos. O núcleo é formado por representantes do PT, do PSOL, do PSB e da Rede.
Na quinta passada (4), pesquisa do Ibope sobre a percepção das questões ambientais revelou que, para a maioria dos brasileiros (77%), proteger o meio ambiente é prioridade, mesmo que signifique menos crescimento econômico e geração de empregos. O estudo foi encomendado pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio) em parceria com a Universidade de Yale.
“A pesquisa mostra que o brasileiro se preocupa com o meio ambiente e as mudanças climáticas, inclusive pessoas que têm pouco acesso à internet, mesmo em proporção menor. O brasileiro está em consonância com a percepção sobre o tema no mundo”, afirmou em coletiva Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima.
Para ele, a importância dada pela população ao meio ambiente vai em algum momento invadir o mundo da política. Mas com Lira no poder, afirma, “veremos no Congresso uma enxurrada histórica de tentativas de aprovação de retrocessos ambientais. Nesse cenário, o inferno é o limite”.
Da Redação