Em 15 junho de 2019, Jair Bolsonaro finalmente retornava à cidade gaúcha de Santa Maria, 26 anos após ser considerado “persona non grata” pela municipalidade. Em junho de 1993, os vereadores haviam aprovado unanimemente moção de repúdio contra o então deputado federal, por defender o fechamento do Congresso e a volta da ditadura. No retorno triunfal do agora presidente, para a Festa Nacional da Artilharia no 3º Grupo de Artilharia de Campanha Autopropulsado, Bolsonaro tocou num dos temas mais recorrentes de sua carreira: armar a população para evitar “golpes de Estado”.
“Nossa vida tem valor, mas tem algo com muito mais valoroso do que a nossa vida, que é a nossa liberdade. Além das Forças Armadas, defendo o armamento individual para o nosso povo, para que tentações não passem na cabeça de governantes para assumir o poder de forma absoluta. Temos exemplo na América Latina. Não queremos repeti-los. Confiando no povo, confiando nas Forças Armadas, esse mal cada vez mais se afasta de nós”, revelou mais uma vez em pronunciamento o que é uma de suas obsessões.
Com seis meses de mandato transcorridos, Bolsonaro já havia adotado uma série de medidas visando a flexibilização do controle sobre armas e sobre quem poderia usá-las, nas mais diversas formas. O tema, afinal, sempre esteve no topo de suas prioridades. Decretar a falência do Estatuto do Desarmamento foi o ponto de partida do processo de desconstrução dos controles e fiscalização estruturados a partir de 2003, quando a legislação entrou em vigor.
O presidente deixa claro que não é um interesse de as pessoas poderem se defender, mas ter o povo armado para fazer uma contraposição às políticas ou adversários. É um recado assustador que podem vir a ser milícias armadas para tentar constranger a democracia
Para evitar a participação da sociedade, majoritariamente contrária ao porte de armas, o presidente tem usado o artifício dos decretos. Mas fracassou em boa parte das iniciativas. No Congresso Nacional há outro foco de resistência, apesar do crescimento da chamada Bancada da Bala nas eleições de 2018, na esteira do bolsonarismo.
Entre um fracasso e outro, no entanto, Bolsonaro avança a agenda, escorado no discurso de que é legítimo “se fazer tudo contra o invasor dentro de sua residência”, com respaldo em parcela minoritária da sociedade. Para ela, o presidente a representa.
E enquanto Bolsonaro se esforça com a caneta, os armamentistas adotam uma tática para burlar as restrições impostas pelo Estatuto do Desarmamento. Ela consiste em evitar o registro via Sistema Nacional de Armas (Sinarm) da Polícia Federal, mais rigoroso, para se qualificar junto ao Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma) do Exército, como um CAC (Caçador, Atirador Esportivo, Colecionador).
O Certificado de Registro (CR) emitido pelo Exército possibilita a aquisição de armas para atividades de Caça, Tiro Desportivo ou Coleção. Para iniciar o processo de concessão do CR é preciso filiar-se a um clube ou entidade de tiro, onde o requerente deverá comparecer e treinar ao menos oito vezes por ano, com presença registrada em ata.
Primeiro ano da Era Bolsonaro
Em 2019, a sigla CAC, até então mais usada por interessados em armas de fogo, começou a fazer parte do vocabulário popular. E Bolsonaro aproveitou as muitas cortinas de fumaça de seu estilo de governar para, nas próprias palavras, “facilitar a vida” de caçadores, atiradores esportivos e colecionadores.
O número de ingressantes no grupo vinha crescendo há anos, mas atingiu o ápice no ano passado, segundo estatísticas do Exército obtidas pelo Instituto Sou da Paz, organização que pesquisa e propõe políticas públicas de segurança. Entre 2014 e 2018, o aumento foi de 879%, de 8.988 para 87.986. De 2018 para 2019, o crescimento foi de 68%. Em 2019, houve mais de 147 mil novas inclusões na categoria dos CACs.
A quantidade de registros ativos fechou 2019 em 396.955, aumento de 50% em relação a 2018. A maior parte é composta por atiradores (200.178), seguidos por colecionadores (114.210) e caçadores (82.567). Eles se concentram nos estados de São Paulo (93.678 registros ativos), Paraná e Santa Catarina (57.265), e Rio Grande do Sul (55.741). Em seguida vêm Goiás, Distrito Federal, Tocantins e parte do Mato Grosso (32.665).
Também é nesses estados que se concentra o maior número de clubes de tiro e lojas de arma de fogo. Atualmente, há quase 900 desses estabelecimentos no País. Eles são registrados junto ao Exército e regulados por portarias e instruções do Comando Logístico. O comando da 5ª região (Santa Catarina e Paraná) concentra mais clubes: 195.
Mais de 82 mil novas armas entraram em circulação pelas mãos dos CACs em 2019, aumento de 24% em relação a 2018, o maior crescimento desde 2014. O grupo de caçadores, atiradores e colecionadores ativos fechou o primeiro ano da Era Bolsonaro com 433.246 armas legalizadas em todo território brasileiro, crescimento de 91% desde 2014. Em dezembro de 2018, antes da posse, o total de CACs estava em 255.402, e o número de armas nas mãos desse grupo era de mais de 350 mil.
No sistema gerenciado pela Polícia Federal, o crescimento também impressiona. Em 2019, foram vendidas mais de 50 mil armas no mercado civil, e o número de registros para defesa pessoal cresceu mais de 130% desde 2010. Atualmente, o número de armas registradas no Sinarm já ultrapassou a casa do um milhão.
Este ano, de janeiro a maio, o volume de armas vendidas no país cresceu 98% em comparação com o mesmo período de 2019, e 90% em relação a 2018. Foram lançadas na sociedade mais 6.343.931 armas de fogo. Em maio, foram vendidos 1.541.780 cartuchos no varejo, 130% a mais que no mesmo mês do ano passado. Isso equivale a mais de duas mil munições por hora.
Armas para o povo
Ações do governo Bolsonaro prometem aumentar ainda mais os benefícios aos CACs. Desde que ele assumiu, o grupo conseguiu aumento no limite de armas —atiradores esportivos podem ter até 60— e também aumento da validade dos registros. Conseguiu ainda permissão para ter fuzis e comprar até 180 mil munições e 20 quilos de pólvora por ano para recarregar munições em casa.
Em 12 de novembro, o Exército regulamentou três decretos presidenciais, autorizando que cada atirador pudesse comprar até 30 armas (inclusive fuzis), os caçadores, até 15 armas, e os colecionadores, até cinco armas de cada modelo colecionado.
Na quinta passada (4), Bolsonaro prometeu mais medidas a um grupo de CACs no Palácio da Alvorada. Os apoiadores agradeceram as ações já tomadas e ele respondeu: “Dá para melhorar mais ainda. Tinha problemas na Justiça que eu nem sabia que existia. Além da IN 131, tem mais INs também. Essa semana, até amanhã, tem novidade aí”. Ele se referia ao Ministério da Justiça, numa crítica indireta ao ex-ministro Sergio Moro.
Bolsonaro garantiu a revogação de instruções normativas (IN) da Polícia Federal (PF) que tratam de armas, entre elas a IN 131, editada em 2018 e que prevê, dentre outras medidas, o limite de duas armas de fogo por cidadão. Pediu ainda sugestões de decretos e portarias sobre o tema, ressaltando que elas não precisam passar pelo Congresso.
Brevemente, já está bastante avançado, uma boa notícia, nós vamos poder importar armas a uso individual sem imposto de importação. Então uma boa medida que vai ajudar todo o pessoal do artigo 142 e 144 da nossa Constituição
Um dia após o encontro com os CACs, na inauguração de um hospital de campanha em Águas Lindas de Goiás, ele anunciou a novidade: “Brevemente, já está bastante avançado, uma boa notícia, nós vamos poder importar armas a uso individual sem imposto de importação. Então uma boa medida que vai ajudar todo o pessoal do artigo 142 e 144 da nossa Constituição”, afirmou o presidente, referindo-se ao artigo evocado quando se trata de uma suposta “intervenção” das Forças Armadas no Estado Democrático de Direito, que o Supremo Tribunal Federal (STF) considera improcedente.
No mesmo sábado do evento em Águas Lindas, um grupo de apoiadores de Bolsonaro em Manaus instalou um outdoor em que apareciam usando camisas com o escudo do Exército. No centro do cartaz, a frase “O povo armado jamais será escravizado”, proferida pelo presidente na infame reunião ministerial de 22 de abril.
O cartaz foi instalado na entrada da praia da Ponta Negra, a cinco quilômetros do Comando Militar da Amazônia (CMA) e a 1,7 quilômetro da 12ª Região Militar (12ª RM), situados na mesma avenida. Diariamente, dezenas de militares praticam corrida ali. O outdoor ostentava o logotipo da associação CAC-AM (Colecionador-Atirador-Caçador), que inclui as iniciais 12ª RM.
Cinco dias antes, em 30 de maio, a Associação CAC Brasil publicou nota em seu perfil no Facebook em defesa da categoria e com a defesa de que “armas salvam vidas”. Se definem como cidadãos de bem e afirmam que a associação agirá como força de reação em apoio ao governo, ao presidente e ao Exército, “contra a roubalheira”.
Cultura de armas
Em entrevista à ‘BBC Brasil’, Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz e um dos maiores especialistas do país em armas e munições, avalia que duas ações contribuíram em maior escala para o aumento dos CACs: a flexibilização da posse de armas, que liberou armamentos de calibres mais potentes; e a revogação de portarias sobre identificação e marcação das armas e munições.
“O crescimento da categoria como um todo é preocupante. Os CAC têm uma série de prerrogativas, acessos a calibres restritos e até a fuzis semiautomáticos, além de quantidade de munição muito maior do que o cidadão comum”, explica.
Perguntado sobre os motivos da busca por registros de CAC, o presidente da Associação CAC Brasil, Marcelo Midaglia Resende, diz que é “um subterfúgio” para ter a arma. “Hoje existe uma cultura mais forte de arma. A pessoa compra uma arma e quer poder usá-la, não só deixar guardada. Mas outros também querem ter porte, embora a gente tente deixar muito claro que o CAC não tem porte, tem apenas porte de trânsito”, explicou.
“Não é possível dizer com certeza por que aumentou a procura. No entanto, é verdade que começaram a surgir grupos e fóruns que divulgam o que é correto por lei, que é o caminho para tirar uma licença de CAC, mas também a informação de que é mais fácil obter arma por meio do registro CAC do que pela Polícia Federal”, diz Natalia Pollachi, coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz.
Segundo ela, “há despachantes nesses fóruns que dizem explicitamente, ‘se você quer ter porte de arma, se registre como atirador’. Essas práticas não são baratas. Portanto, essa explosão faz a gente suspeitar que essas pessoas não estão praticando tiro esportivo, participando de competições ou colecionando armas de valor histórico”.
Bruno Langeani aponta que as ações do governo, ainda mais depois da reunião ministerial de 22 de abril, explicitam que há nelas um caráter pessoal de Bolsonaro. “Com 50 milhões de pessoas pensando em auxílio e outros 13 milhões de desempregados, você vê o presidente gastando tempo de uma reunião ministerial para falar de arma. Dar prioridade a esse tema, depois de todas as flexibilizações já feitas, no meio de uma pandemia, é totalmente equivocado”, avalia.
“Há vídeo de atiradores com camiseta de Bolsonaro disparando e gritando palavras de apoio ao presidente e xingamentos contra governadores”, exemplifica Langeani. “O presidente deixa claro que não é um interesse de as pessoas poderem se defender, mas ter o povo armado para fazer uma contraposição às políticas ou adversários. É um recado assustador que podem vir a ser milícias armadas para tentar constranger a democracia”.
Segundo ele, ao contrário do que defendem os apoiadores do armamento, mais armas trazem mais risco do que mais segurança. O representante do Sou da Paz cita Ronnie Lessa, ex-PM acusado de integrar o Escritório do Crime, grupo de matadores que prestava serviços à milícia da Zona Oeste do Rio de Janeiro, e de ter assassinado a vereadora Marielle Franco, em março de 2018.
“O executor da Marielle tinha registro como CAC válido até 2021 quando foi preso. Tinha o registro mesmo estando claramente envolvido com atividades criminosas bastante graves. E estava aproveitando da série de prerrogativas dos CACs para desenvolver atividades criminosas”, aponta o gerente do Instituto Sou da Paz.