As contradições no discurso de Jair Bolsonaro não se limitam ao seu posicionamento sobre violência, questões de gênero, educação e economia. Para além das premissas de ser o representante da “tradicional família brasileira”, o candidato a presidente do PSL escorrega também quando o assunto é religião – tema que norteia grande parte da sua campanha.
Autoproclamado cristão convicto e devoto incontestável de Deus, o radical já mostrou que não dá a mínima para os valores que ele mesmo defende, como fica claro no lamentável episódio em que chamou o cardeal arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns de “desocupado”, “vagabundo” e “megapicareta” durante discurso no plenário da Câmara.
O episódio ocorreu em 1998 e foi uma reação do deputado a uma carta publicada na Folha assinada pelo religioso e por outras 159 pessoas. No manifesto, o grupo critica a nomeação do general e médico Ricardo Fayad para a subdiretoria de Saúde do Exército e afirma que o “presidente da República tem o dever de tomar medidas para impedir a admissão, em qualquer cargo oficial, de pessoas que tenham atuado em órgãos de repressão”.
Este ano, Fayad finalmente foi enquadrado pela Justiça por tomar parte em crimes de tortura durante a Ditadura Militar. Fayad já estava impedido de exercer a medicina após ter o registro cassado pelo Conselho Regional de Medicina do Rio.
A carta organizada por Arns também fazia duras críticas à possibilidade de Bolsonaro assumir à presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. O parlamentar, desde aquela época avesso a qualquer fagulha de humanidade, enfrentou a reação de vários setores da sociedade por defender a pena de morte, a prisão perpétua, o regime de trabalhos forçados para condenados, a redução da maioridade para 16 anos e um rígido controle da natalidade como maneira eficaz de combate à miséria e à violência.
Em plenário, a resposta de Bolsonaro foi, como lhe é habitual, violenta e desmedida: “Existe outro megapicareta chamado d. Paulo Evaristo Arns, que teve a cara-de-pau de publicar carta aos leitores do jornal Folha de S. Paulo (…) assinada por mais 155 desocupados e vagabundos como ele, criticando minha possível eleição para a presidência da Comissão de Direitos Humanos”.
O intolerante parlamentar ainda repetiu a ofensa ao criticar a “comissão, que defende os direitos humanos de vagabundos como ele, d. Paulo Evaristo Arns, que parece que tem as chaves da porta do céu. Mas, na verdade, as chaves que ele tem na cintura são da porta do inferno”. O deputado Bolsonaro conclui dizendo que “esse D. Paulo Evaristo Arns deve se recolher a sua insignificância, ao seu trabalho demagogo”.
Humanista x intolerante
As críticas de Bolsonaro a Arns não afrontam apenas a honra de uma das figuras centrais na luta pelos direitos humanos no Brasil durante os anos de chumbo. Tais ofensas, além de mostrar a falta de coerência na tão defendida religiosidade do homem que pretende “salvar a nação, ainda atacam de maneira direta a própria história do país.
Quinto de 13 filhos de imigrantes alemães, Arns nasceu em 1921 na cidade catarinense de Forquilhinha. Sua trajetória religiosa começou em 1939, quando ingressou na Ordem Franciscana em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Formou-se em teologia e filosofia em universidades brasileiras. Ordenado sacerdote em 1945, ele foi estudar na Sorbonne, em Paris, onde cursou letras, pedagogia e também defendeu seu doutorado.
Durante a ditadura militar, destacou-se por sua luta política, em defesa dos direitos humanos, contra as torturas e a favor do voto nas Diretas Já. Ganhou projeção nacional e internacional em 1971, logo após tornar-se arcebispo de São Paulo e denunciar a prisão e tortura de dois agentes de pastoral, o padre Giulio Vicini e a assistente social Yara Spadini.
Sem medo de represálias, chegou a enfrentar Emílio Garrastazu Médici devido à crescente violência da ditadura: “Senhor presidente, eu estou aqui pra dizer ao senhor que nós gostaríamos que houvesse julgamento em São Paulo, que as pessoas não fossem presas assim sem mais nem menos”.
Também organizou celebrações históricas na Catedral da Sé, no Centro de São Paulo, em memória de vítimas da ditadura militar. Dom Paulo Evaristo Arns morreu em 2016, aos 95 anos, em São Paulo.
Da Redação da Agência PT de Notícias