Ao mesmo tempo em que defende a liberdade de expressão de seus seguidores em manifestações antidemocráticas, o presidente Jair Bolsonaro investe novamente contra ela. Nesta segunda (15), a mando do chefe, o ministro da Justiça, André Mendonça, anunciou a abertura de uma investigação contra o chargista Renato Aroeira e o jornalista Ricardo Noblat. Aroeira criou e Noblat publicou charge em que uma cruz vermelha, símbolo da proteção que o Direito Internacional confere aos doentes e feridos, é transformada em suástica, aludindo à pregação bolsonarista pela invasão de hospitais.
“O pedido de investigação leva em conta a lei que trata dos crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, em especial seu art. 26”, disse André Mendonça, em seu Twitter. Na mesma rede social, o advogado e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Thiago Amparo lembrou que, em 2019, Bolsonaro perdeu um processo semelhante contra outro chargista que o associou ao nazismo.
A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) considerou “estarrecedor” o inquérito policial. “A aversão à crítica é própria das ditaduras e dos candidatos a ditador. No entanto, as ameaças não calarão os defensores da liberdade de imprensa e da democracia “, diz o texto assinado pelo presidente da entidade, Paulo Jerônimo.
Na sexta, em entrevista nas páginas amarelas da revista ‘Veja’, o ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, havia declarado que Bolsonaro nunca defendeu um golpe militar, mas alertou a oposição a “não esticar a corda” e mandou um recado para o Supremo Tribunal Federal (STF).
O general lembrou um comentário do ministro Celso de Mello, lembrando o incêndio do Parlamento alemão, que marcou a tomada do poder pelo nazismo. “Vazou a mensagem de WhatsApp em que o ministro do Supremo comparou o presidente Bolsonaro ao Hitler e os seus seguidores a nazistas. Isso contribui para o clima de diálogo e para buscar uma harmonia entre os poderes? Acredito que não”, comentou o general ainda da ativa.
Embora incomode o presidente a associação entre bolsonarismo e nazismo, o fato é que há anos os supremacistas brancos têm manifestado admiração pelo discurso racista, anticomunista, armamentista e LGBTfóbico do presidente. E pior, essa narrativa os tem estimulado a avançar e conquistar mais adeptos via internet.
A Safernet, ONG que promove os direitos humanos, levantou que em maio deste ano foram criadas 204 páginas de conteúdo neonazista, ante 42 no mesmo mês do ano passado e 28 em maio de 2018. Segundo a organização, a relação de causalidade entre o que diz e faz o presidente e a radicalização nas redes é direta. Em nota, a entidade afirmou ser “inegável que as reiteradas manifestações de ódio contra minorias por membros do Governo Bolsonaro têm empoderado as células neonazistas no Brasil”.
Em outubro de 2018, quando Bolsonaro venceu as eleições, o número de novas páginas neonazistas em redes sociais e sites no Brasil chegou a 441 (ante 89 em setembro). Segundo a Safernet, foi um pico histórico.
Antropóloga da Universidade de Campinas (Unicamp), Adriana Dias identificou 334 células neonazistas em atividade no país no final de 2019. Cada uma tem entre 3 e 30 integrantes. “Existem grupos ou células neonazistas que têm se aproximado mais do bolsonarismo e dos atos recentes de rua”, afirmou a pesquisadora ao jornal ‘El País’.
Dias prepara um livro que deve abordar os grupos neonazistas brasileiros. Há seguidores de diversas linhas – hitleristas são a maioria, mas há ainda supremacistas brancos, separatistas, negacionistas do Holocausto, Klu Klux Klan, entre outros. Segundo ela, há ainda os “autointitulados soberanistas (ligados ao filósofo Olavo de Carvalho), que aparecem em células neonazistas no Paraná, Distrito Federal, São Paulo e em Goiânia”.
Segundo a pesquisadora, no Brasil há cerca de 500 mil pessoas que baixam material extremista de direita. ”Os que praticam em células mesmo são de 4 mil a 5 mil pessoas, mas em torno delas há muita gente para ajudar. Agora, se houvesse uma conspiração neonazista grande no Brasil hoje, seriam pelo menos 600 pessoas dispostas a cometer crimes graves”, avaliou Dias, para quem a sociedade brasileira está “nazificando-se”.
“As pessoas que tinham a ideia de supremacia guardada em si viram o recrudescimento da direita e agora estão podendo falar do assunto com certa tranquilidade. Justamente para não dar palanque a essas ideias, precisamos falar sobre criminalização de movimentos de ódio e resgatar a questão crucial: compartilhar humanidades.”
Leite manchado de sangue
Durante uma live no fim de maio, Bolsonaro citou o Desafio do Leite, criado pela Associação Brasileira dos Produtores de Leite (Abraleite), como forma de incentivar o consumo e ajudar os produtores. O ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad lembrou que o gesto de Bolsonaro saudava movimentos neonazistas e o condenou.
“O menino João Pedro, baleado pelas costas; George Floyd, asfixiado. Bolsonaro tomando leitinho com Allan dos Santos para brindar supremacistas brancos. Sinto asco”, escreveu Haddad. A crítica se baseava no fato de o movimento supremacista branco norte-americano e de outras partes do mundo ter adotado o leite como um símbolo.
Após a repercussão, Bolsonaro se manifestou e classificou o comentário como fake news. Mas o filho, Eduardo Bolsonaro, postou no Twitter uma foto dos atores Taís Araújo e Lázaro Ramos tomando leite, enquanto o youtuber Allan dos Santos postou um vídeo bebendo um copo de leite e comentando que “entendedores entenderão”.
Professor de Antropologia da Universidade da Virgínia (EUA), David Nemer comentou a provocação na rede. “Bolsonaro faz a política do apito de cachorro: usa uma linguagem codificada que parece significar uma coisa para a população em geral, mas tem significado específico para o subgrupo que ele pretende atingir. Esse subgrupo entende a mensagem e se empodera”, avaliou.
O especialista em Antropologia da Informática apontou para o perigo desses coletivos. “Esse grupo de extrema direita, por mais que seja a minoria na sociedade, colabora para a radicalização da base bolsonarista, que está menor, mais radical”.
Na noite de 19 de fevereiro, a sede do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) em Niterói (RJ) denunciou ter recebido ameaças por escrito, em um texto intitulado “Marielle Ausente! Comunista bom é comunista morto!”. O texto dizia: “Um ultimato ao PSOL. Leiam até o fim e cumpram as nossas exigências, ou sofrerão as consequências”.
“Foi feito com o objetivo de evitar que o partido participe das eleições municipais deste ano”, disse o deputado estadual Flávio Serafini, lembrando que o material tinha frases tipicamente supremacistas.
O advogado Marco Antônio André, de Blumenau (SC), também lidou com o racismo. Em setembro de 2017, postes em frente à casa dele amanheceram com ameaças: “Negro, comunista, antifa, macumbeiro. Estamos de olho em você”. O cartaz ainda tinha o desenho de um integrante e do símbolo da Ku Klux Klan.
Para André, o caso só ganhou visibilidade porque ele, como advogado, denunciou o ataque. Mas outros exemplos de ódio saltam aos olhos no Brasil de hoje. “Quando você diz que 70% vão se infectar e alguns vão morrer, esses ‘alguns’ são os pobres que vivem nas grandes periferias e, por consequência, os negros. É uma forma muito cruel e meticulosa de implementar a eugenia no Brasil, usando a pandemia. As bandeiras que tremulam na Avenida Paulista são as mesmas que fazem parte de grupos ligados a esse discurso de supremacia branca e outras loucuras vintage”, lamentou.
Rede global de milicianos de direita
Em um contexto global de aumento do radicalismo e da xenofobia, Bolsonaro se tornou a escolha da vez dos supremacistas na América Latina. “Todos os movimentos (neonazistas) apostaram no bolsonarismo, e alguns estão profundamente decepcionados com o presidente porque esperavam que ele fosse impor uma gestão ainda mais à direita: coisas como proibir a homossexualidade no Brasil”, afirma Dias.
Uma facção ainda mais radicalizada, que de acordo com a pesquisadora corresponderia a aproximadamente 25% dos neonazistas brasileiros, esperava “uma direita totalmente radical, ultra total, e ele está namorando com isso”.
Segundo a antropóloga, o neofascismo tupiniquim, assim como os de Portugal, Espanha e países eslavos, é diverso. “O conceito inicial é baseado nas ideias de raça e sangue surgidas no século XIX. Mas há quem pregue nazismo enquanto cultura”, afirma.
A ideologia da supremacia branca preponderou nos tempos do nazismo na Alemanha e, após a Segunda Guerra, tornou-se algo marginal. Com o advento das redes sociais, no entanto, chegou ao mainstream. No Twitter e no Facebook, alguns formadores de opinião e seus seguidores, inclusive no Brasil, pregam o ódio contra muçulmanos, negros, imigrantes e os que chamam de “globalistas”.
Se há 20 anos um neofascista brasileiro seria menosprezado por seu congênere alemão ou austríaco, hoje a internet permite um constante intercâmbio. Isso faz com que supremacistas brancos americanos que não falam uma palavra de alemão se sintam herdeiros do legado do hitlerismo. “Se a suástica fala à sua alma, você vai entender”, pregam em chats e chans — os grupos de conversa na deep web.
Em 2018, durante a campanha eleitoral brasileira, o ex-líder da Ku Klux Klan nos Estados Unidos David Duke citou o então candidato do PSL à Presidência em seu programa de rádio. Ao falar de Bolsonaro, Duke comemorou o fato de o brasileiro ser um nacionalista: “Ele soa como nós. Ele também é um candidato muito forte”.
Em seu comentário, David Duke começa dizendo que movimentos nacionalistas têm se espalhado pelo mundo “até em países que você nunca pensou”. “Ele é um descendente europeu. Ele se parece com qualquer homem branco na América, em Portugal, Espanha ou Alemanha e França ou Reino Unido”, disse Duke em referência a Bolsonaro.
O crescimento da ultradireita é sentido em toda a Europa, onde apenas dois parlamentos não têm membros da extrema-direita entre os membros eleitos pela população. Na Alemanha, o governo diz que o verdadeiro objetivo dessas patrulhas é intimidar estrangeiros e oponentes políticos. Autoridades afirmam que tais grupos existem em quase todos os estados do país. O governo considera as autodenominadas “milícias de cidadãos” como grupos com “potencial para terrorismo de extrema direita”.
No Reino Unido, o número de brancos presos por terrorismo cresceu pelo segundo ano seguido em 2019, superando o número de negros e asiáticos detidos. O alinhamento com a extrema-direita tem crescido rápida e consistentemente nos últimos três anos e já é considerada a maior ameaça dentro do Reino Unido.
Dados publicados da Liga Anti-Difamação (ADL, na sigla em inglês) revelam que, em 2017, 59% do total de atentados terroristas nos Estados Unidos e outros casos de violência foram cometidos por grupos de extrema direita e supremacistas brancos. Um ano antes, este setor extremista era responsável por 20% dos casos.
Brian Levin, diretor do Centro para Estudo do Ódio e Extremismo, da Universidade da Califórnia, aponta que o número de homicídios cometidos por eles aumenta. “Qualquer movimento radical e de ódio pode cometer um ataque em massa. Mas há algumas ideologias que estão tendo um incentivo maior. Hoje, os nacionalistas brancos são a ameaça extremista mais proeminente”, avalia o pesquisador.
“Desde 2015, o mundo observa um aumento no terrorismo relacionado ao supremacismo branco”, afirmou o coordenador de combate ao terrorismo dos EUA, Nathan Sales. “Os Estados Unidos não estão imunes a essa ameaça”, acrescentou.
Salles, Eduardo e a extrema-direita americana
Enquanto o mundo civilizado se movimenta contra o neonazismo, Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente de um país com maioria da população parda ou negra, não viu problema em conceder entrevista ano passado ao youtuber Stefan Molyneux, notório supremacista branco. Molyneux é um canadense de extrema-direita conhecido por promover visões racistas e apoiador da campanha presidencial de Donald Trump.
A Freedomain Radio, comunidade de internet que Molyneux lidera, tem sido descrita como uma seita e ele, como um líder de culto que usa técnicas de doutrinação de seita com seus seguidores. A atuação desses influenciadores tem marcado uma nova fase na propagação do terrorismo supremacista branco.
Este ano, no começo de março, antes da visita de Bolsonaro aos Estados Unidos, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) manteve compromissos naquele país para estreitar relações com personalidades da extrema-direita norte-americana.
Além de ir à Conferência de Ação Política Conservadora, evento no qual fez críticas à imprensa e ao socialismo e defendeu o acesso a armas, o deputado do PSL participou de um encontro paralelo, promovido por um grupo de republicanos alinhados a Trump.
Os cicerones do “03” no encontro Republicanos pela Renovação Nacional, em Washington, foram dois ícones da extrema-direita. Um é Corey Stewart, trumpista da Virgínia que concorreu ao Senado em 2018 e teve como um de seus mais emblemáticos apoiadores Jason Kessler, organizador do ato “Unir a Direita”, que reuniu supremacistas brancos e neonazistas com bandeiras de suásticas em Charlottesville, em 2017.
Outro líder conservador que acolheu Eduardo foi Paul Gosar, deputado do Arizona. Os nomes dos dois apareciam em destaque no anúncio oficial do evento, que foi discreto, fechado à imprensa e reuniu um público reduzido.
Eduardo, Stewart e Gosar têm ao menos uma coisa em comum: o interesse na popularização do acesso a armas de fogo. Os dois americanos foram formalmente apoiados pela Associação Nacional do Rifle (NRA). A entidade foi uma das patrocinadoras da Conferência de Ação Política Conservadora.
Durante o roteiro com políticos conservadores, Eduardo concedeu uma série de entrevistas. Uma delas foi para Alex Jones, de quem o brasileiro se definiu como “um grande fã”. Jones é um dos mais célebres propagadores de teorias conspiratórias nos EUA, atividade que lhe rende processos e sanções. O site dele, o Infowars, já foi banido de plataformas como Google, Facebook e Spotify por ter conteúdo considerado de ódio.
“Você não sabe, mas uns anos atrás eu enviei um e-mail para você para tentar ser o cara da Infowars no Brasil”, disse Eduardo na entrevista, reproduzida nas redes sociais do filho do presidente.
Steven Levitsky, autor do livro ‘Como as democracias morrem’, enxerga em Bolsonaro um grande exemplo para o título de seu livro. Para Francis Fukuyama, autor do famoso livro ‘O fim da história’, Bolsonaro é mais um membro dessa nova “Internacional Populista”, a extrema-direita sem apreço pela democracia.