Em mais um surto bravateiro, Jair Bolsonaro voltou a ameaçar o Supremo Tribunal Federal (STF) nesta quarta-feira (15). Em discurso no evento Moderniza Brasil, promovido na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), ele prometeu “tomar uma decisão” caso a Corte decida contra a tese do marco temporal das terras indígenas. O placar do julgamento, paralisado por pedido de vista, está em 1 a 1.
“O Fachin votou pelo novo marco temporal, não é novidade. Trotskista, leninista”, começou Bolsonaro. “Kassio empatou. Vista está com o nosso Alexandre de Moraes. Não sei qual vai ser o voto dele, ou quando vai ser. Se perdermos, eu vou ter que tomar uma decisão porque eu entendo que esse novo marco temporal, simplesmente, enterra o Brasil”, afirmou, sob aplausos da plateia.
A bravata de Bolsonaro em São Paulo ocorreu no mesmo dia em que lideranças indígenas protocolaram um documento junto ao gabinete do presidente do STF, ministro Luiz Fux. O texto, assinado por lideranças dos povos Xokleng, Kaingang, Tukano, Kalapalo, Tupi-Guarani, Kanela do Araguaia, Terena e Macuxi, solicita a retomada e conclusão do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365.
O STF começou a julgar em agosto se a demarcação de terras indígenas deve seguir o critério do marco temporal, pela qual os indígenas teriam direito somente às terras que ocupavam em 5 de outubro de 1998, data da promulgação da Constituição. Eventual aprovação dificultaria novas demarcações de terras indígenas.
Relator do processo, Fachin foi favorável à revisão, que permitiria aos indígenas reivindicar outras terras. Indicado por Bolsonaro, Kassio Nunes Marques divergiu, votando a favor da tese. Alexandre de Moraes pediu vista dos autos e os devolveu em 11 de outubro para a retomada do julgamento. A nova data depende de Fux.
Na carta, as lideranças ressaltam os ataques cometidos pelo desgoverno Bolsonaro e aliados contra os povos originários e seus direitos constitucionais. Também recordam que o próprio Fux havia se comprometido a dar “a prioridade que o tema merece”.
Os povos indígenas “sofrem cotidianamente os mais vis ataques decorrentes da omissão do Estado em demarcar nossas terras e do estímulo da invasão de nossos territórios pelo Executivo Federal”, destaca o documento. “É permanente a tentativa de apropriação dos nossos corpos, da terra onde vivemos e dos recursos naturais que protegemos, a exemplo dos ataques diretos de garimpeiros, madeireiros e fazendeiros.”
Para o jurista Wálter Maierovitch, colunista do UOL, Bolsonaro atentou contra o Estado Democrático de Direito ao ameaçar a Suprema Corte. “O Direito diz que a última palavra é do STF. Essa é mais uma do Bolsonaro, mais uma prova da sua postura autoritária, antidemocrática, fascista”, acusou.
“Corrida do ouro” bolsonarista
Além das evidentes inclinações antidemocráticas, o episódio é mais um na cadeia de evidências que apontam um envolvimento mais que apenas eleitoreiro do ex-capitão com o garimpo. Em setembro, reportagem da Folha de São Paulo constatou que o governo federal pagou pelo menos R$ 124 milhões a empresas acusadas de envolvimento com garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami. Desde janeiro de 2019, quando Bolsonaro chegou ao poder, os pagamentos somam R$ 75 milhões.
Uma investigação conduzida pela Polícia Federal junto com a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) revelou detalhes do esquema. As empresas prestaram serviços a diversos órgãos federais nos últimos anos, especialmente ao Ministério da Saúde, que as contratou para ajudar no cuidado médico a indígenas na região amazônica.
Por sua vez, estudo da Operação Amazônia Nativa (Opan), com o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), demonstra que o lobby pró-garimpo de Bolsonaro tem contribuído para acelerar a corrida por minérios e suscitar conflitos fundiários.
O levantamento, feito com base em processos que tramitam na Agência Nacional de Mineração (ANM), revela que as requisições para atividades de lavra garimpeira no Amazonas dispararam 342% em 2020, comparado à média dos 10 anos anteriores.
Os quase três mil processos ativos atingem 120,8 mil quilômetros quadrados, o equivalente a 8% do território amazonense, ou a quase 10 vezes a cidade de São Paulo. Com demanda crescente no mercado internacional, o mineral mais visado é o ouro, com 33% dos pedidos. Em segundo lugar vem o potássio, usado na indústria de fertilizantes.
“Frente a esse contexto político, a ameaça de liberação de todos esses processos minerários pode gerar um impacto imensurável para os povos indígenas, comunidades tradicionais e para toda a sociedade brasileira”, disse Renato Rodrigues Rocha, indigenista do Programa Direitos Indígenas da Opan, ao Brasil de Fato.
Os pesquisadores confirmaram a existência de uma estratégia para burlar as regras que limitam a exploração de minerais no Amazonas a até 100 quilômetros quadrados para associações de trabalhadores do setor. Cerca de 90% dos processos foram protocolados por cooperativas, atividade considerada artesanal e de baixo impacto ambiental. Mas na prática as entidades implementam projetos de escala industrial.
“Essas cooperativas têm criado vários requerimentos contíguos ou muito próximos. Isso tem se mostrado um subterfúgio para conseguir protocolar processos que, quando somados, ultrapassam muito a área máxima permitida”, explica o indigenista da Opan. “Há uma concentração muito grande de requerimentos em poucos titulares. Cerca de 90% da área requerida para exploração de ouro é de apenas 10 cooperativas.”
Mais de 150 processos minerários se sobrepõem a quase 6 mil quilômetros quadrados de áreas protegidas do Amazonas, onde a exploração mineral é expressamente proibida ou bastante restrita. Os principais alvos são florestas nacionais e estaduais, áreas de proteção ambiental e reservas de desenvolvimento sustentável. Nessas últimas, a lavra não é expressamente proibida, mas é autorizada só em situações excepcionais.
Além disso, o setor quer explorar 16 quilômetros quadrados em terras indígenas, 110 quilômetros quadrados sobrepostos a unidades de conservação de proteção integral e outros 138 quilômetros quadrados em sobreposição a reservas extrativistas. Nestas, o garimpo não é permitido sob qualquer hipótese. Cem processos visam ainda explorar minérios a menos de 10 quilômetros de 37 terras indígenas do Amazonas.
“Já houve duas decisões judiciais a partir de ações movidas pelo Ministério Público Federal do Amazonas, indicando a anulação de processos em terras indígenas e de pedidos sobrepostos a unidades de conservação e proteção integral. Ainda assim, encontramos essas sobreposições”, critica Rocha.
O indigenista também aponta violação sistemática do direito à consulta prévia, livre e informada das comunidades tradicionais, quando são impactadas por grandes empreendimentos econômicos. Previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o direito à consulta é garantido por lei no Brasil.
“Esses processos minerários, como são medidas administrativas do governo brasileiro, deveriam ser submetidos à consulta das comunidades, mas não são. Eles tramitam na ANM sem que as comunidades sequer saibam de sua existência”, denuncia.
Brasil exporta mais ouro do que produz legalmente
Um segundo estudo, ‘Legalidade da produção de ouro no Brasil’, constatou que pelo menos 28% do ouro produzido no Brasil em apenas dois anos, e vendido com certificado da ANM, apresentaram evidências de ilegalidade.
“Na Amazônia, as evidências são ainda mais graves. 90% da produção aurífera ilegal do Brasil provem de lavras garimpeiras na Amazônia”, afirmou à DW Brasil Raoni Rajão, coordenador da pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em parceria com o Ministério Público Federal (MPF).
Conforme a pesquisa, em 2019 e 2020, 174 toneladas de ouro foram negociadas. Do total, 38% vieram de origem desconhecida, 28% foram identificadas como irregulares (ilegais ou potencialmente ilegais), e apenas 34% aparentemente tiveram origem legal.
O estudo evidencia a falta de fiscalização e controle da cadeia de produção aurífera no Brasil, e vincula desmatamento e violações de Terras Indígenas (TIs) à produção ilegal de ouro. Também revela que 21 mil hectares de Floresta Amazônica foram desmatados para mineração entre 2019 e 2020, a grande maioria no Pará. Desses 21 mil desmatados, ao menos 5 mil hectares ocorreram em terras indígenas homologadas, ameaçando povos originários da Amazônia como os Kayapó, Yanomami e Munduruku.
“Nós já tínhamos feito um outro estudo, publicado na revista Science, The rotten apples of Brazil’s agribusiness (As maçãs podres do agronegócio brasileiro), que foi exatamente uma tentativa exitosa de sair da análise sobre desmatamento e ilegalidade na produção agrícola no nível de município e chegar no nível de transações individuais”, diz Rajão, que é professor associado de Gestão Ambiental e Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia no Departamento de Engenharia de Produção da UFMG.
Seguindo a mesma lógica, o novo estudo se concentrou na produção e rastreabilidade do ouro. “Como no estudo anterior, em que o primeiro passo foi distinguir desmatamento legal e ilegal, fizemos o mesmo com a cadeia do ouro, neste caso em colaboração com o Ministério Público Federal, que já tem uma série de investigações em andamento sobre a questão “, afirma o pesquisador.
Rajão disse que o Brasil exporta mais ouro do que legalmente produz, e 72% vão para Canadá, Reino Unido e Suíça. “Existe uma chance muito grande de que boa parte desse ouro ilegal esteja indo para esses três países, além de outros países como Índia e Emirados Árabes”, ressaltou o professor.
“Se nós, pesquisadores, com base em dados disponíveis publicamente, já conseguimos ver quase 30% da produção com evidências de ilegalidade, como é que o governo, que tem muito mais informações, não consegue ver isso e não toma as providências?”, questiona Rajão.
Da Redação, com informações de Brasil de Fato e agências