O Brasil completou 46 dias sem ministro da Saúde no meio da maior crise sanitária de sua história. A pasta, assim, como o governo de modo generalizado, não possui comandante nem plano para combater a pandemia do coronavírus, que se alastra livremente pelo país. O acinte do presidente Jair Bolsonaro deixa um rastro de destruição cuja dimensão trágica atinge novos patamares históricos: nesta quarta-feira (1º), o país ultrapassou a marca de 60 mil mortos por Covid-19. Foram 60.713 vidas interrompidas, de um total de 1.453.369 pessoas infectadas, segundo último boletim do consórcio formado por veículos de imprensa. Nas últimas 24 horas, 44.884 novos casos foram confirmados e 1.057 óbitos.
“De “Gripezinha” classificada por Bolsonaro, a pandemia do coronavírus se tornou a maior tragédia do século”, lamentou o senador Rogério Carvalho (SE), líder do PT no Senado. A tragédia agora se alastra pelo interior, aterrorizando autoridades em saúde pública tanto de pequenas cidades quanto dos grandes centros. Isso porque a falta de capacidade de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) gera o chamado efeito bumerangue, quando pacientes infectados no interior levam o vírus de volta para as capitais em busca de atendimento, na definição do neurocientista e coordenador do Comitê Consórcio de Cientistas do Nordeste, Miguel Nicolelis.
Recife, por exemplo, atualmente responde por 21% dos registros de novos casos no estado de Pernambuco. Em abril, o índice era de 54%. “Eu considero a interiorização o maior desafio que o Brasil enfrenta”, disse Margareth Dalcomo, pneumologista e pesquisadora da Fiocruz, em entrevista ao programa ‘Tem Notícias’, da Rede Globo de São Paulo. “Imagine São Paulo, a malha rodoviária de São Paulo é imensa. Então é muito fácil entender que a epidemia chegaria às cidades menores”, afirmou Dalcomo.
De acordo com a pesquisadora, apenas 20% dos municípios têm leitos de terapia intensiva. “Muitos outros [municípios] precisarão de remoção de pacientes. Essa logística eventualmente poderá ser muito complexa, cara e difícil. É uma situação que nos preocupa muito, o prognóstico não é bom, mas é uma dinâmica epidêmica esperada”, observou.
Mensagens conflitantes
A inexistência de uma política do governo federal para o enfrentamento da pandemia, em um país continental e complexo como o Brasil, torna as chances de êxito cada vez menores, à medida que a disseminação da doença avança. Além disso, desde o início da pandemia, o negacionismo presidencial bateu de frente com as iniciativas de governadores e prefeitos, a maioria defensora das medidas de isolamento social. O ruído entre mensagens conflitantes de confinamento x flexibilização causou confusão na população, e o resultado é que, no momento mais agudo da doença, o Brasil marca os mais baixos índices de isolamento social desde o início da pandemia. Há semanas, a taxa média de confinamento nacional está estacionada em 39%, de acordo com o portal de monitoramento da doença, Geocovid-19.
Em entrevista coletiva concedida nesta quarta-feira, o diretor do programa de emergências da agência (OMS), Michael Ryan, aconselhou as autoridades brasileiras a concentrarem-se em reduzir a mortalidade no país e a melhorar a qualidade das informações sobre a pandemia que são transmitidas à população. Ele reconheceu que o surto é “um desafio complexo para o Brasil”. Questionado sobre a situação atual, Ryan disse que o Brasil é “grande e diverso”, tornando mais difícil a contenção da doença. Ainda assim, defendeu a adoção de estratégia “abrangente” no quadro de enfrentamento da epidemia.
Abordagem fragmentada
“Nos preocupa que alguns países não usaram todos os instrumentos à disposição deles e adotaram uma abordagem fragmentada. Esses países têm um caminho longo e duro à frente”, observou o diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, na mesma coletiva. Uma clara referência a nações como Brasil e EUA, cuja omissão frente aos desafios impostos pela pandemia resultaram em uma verdadeira catástrofe humanitária.
Assim como no Brasil, as projeções feitas por especialistas americanos para os EUA são desalentadoras. O consultor médico da Casa Branca Anthony Fauci declarou que o país norte-americano pode registrar em breve 100 mil novos casos de coronavírus por dia se o governo deixar a pandemia solta como está.
100 mil casos diários
“Agora temos 40 mil novos casos por dia”, lembrou o especialista, diretor do Instituto Americano de Doenças Infecciosas, em audiência perante o Comitê de Saúde e Educação do Senado, na terça-feira (30). “Eu não ficaria surpreso se atingirmos 100 mil por dia se isso não mudar”, alertou.
Os EUA já ultrapassaram a marca de 160 mil mortos e se aproximam da contagem de 3 milhões de infectados. O número atual é de 2.768.571 doentes. Assim como o negacionista Bolsonaro, que já responsabilizou governadores e prefeitos pela crise que ajudou a criar, o presidente americano, Donald Trump, direciona sua “indignação” contra a China, a quem culpa pela crise interna.
“Enquanto vejo a pandemia espalhar sua face feia em todo o mundo, inclusive o tremendo dano que fez aos Estados Unidos, fico mais e mais irritado com a China”, limitou-se a escrever Trump, em mensagem pelo Twitter. “O povo pode vê-lo e eu posso senti-lo!”, exclamou. A julgar pelo quadro pandêmico na América, tudo indica que Trump terá motivos de sobra para zangar-se após as próximas eleições presidenciais.
Esgotos
O teto de gastos com o Sistema Único de Saúde (SUS), imposto pelo governo Michel Temer e mantido por Bolsonaro, terminou de asfixiar um sistema de saúde já subfinanciado. O despreparo para o enfrentamento à doença soma-se às péssimas condições de infraestrutura e saneamento, especialmente no Norte e Nordeste. Com a descoberta por parte de cientistas de traços dos vírus nas fezes humanas, o potencial de disseminações em regiões sem tratamento de água, por exemplo, é explosivo.
Pesquisadores da Fiocruz confirmaram a presença do vírus em amostras da rede coletora de esgotos de Niterói. As coletas foram realizadas durante 11 semanas, entre abril e junho, e testaram positivo para a presença do vírus em 85% das amostras. A pesquisa, que tem duração prevista para um ano, foi feita em parceria com a prefeitura do município.
“Essa pesquisa tem possibilitado um outro olhar para análise da transmissão e compreensão de como o vírus está circulando”, afirmou a subsecretária de Saúde de Niterói, Camilla Franco ao portal ‘Agência Fiocruz de Notícias’. De acordo com Franco, foram priorizados pontos de coleta em lugares de maior vulnerabilidade, como comunidades carentes.
Para Marize Pereira Miagostovich, chefe do Laboratório de Virologia Comparada e Ambiental do IOC/Fiocruz e responsável pela pesquisa, “a inclusão de áreas vulneráveis no monitoramento permitiu rastrear casos precoces da doença em determinadas comunidades”. Os dados contribuíram para tomadas de decisões da Secretaria de Saúde na região, destacou a pesquisadora.
Da Redação, com informações de Fiocruz