Em 2015, quando defendíamos a necessidade de um PT para tempos de guerra, éramos tidos por alguns como, no mínimo, exagerados. Naquele momento a mudança da estratégia, linha política, organização e direção do Partido dos Trabalhadores já afirmava sua urgência.
No partido e no governo, a opção por redobrar a aposta na estratégia de conciliação com as classes dominantes permitiu manter até certo ponto conquistas sociais da constituição de 1988 e dos governos petistas, mas não foi capaz de realizar reformas estruturais populares. Medidas de governo e de ajuste fiscal recessivo que afastavam o governo Dilma do programa eleito nas eleições gerais de 2014 agravaram a situação econômica, o quadro político e a perda de apoio na classe trabalhadora. Acertadamente, a Frente Brasil Popular lutou neste período articulando a defesa da democracia e dos direitos contra o golpe com a luta pela mudança da política econômica.
Em direção oposta, o grande capital nacional e internacional, a direita brasileira, o partido da mídia, segmentos do aparato de Estado e setores médios conservadores dirigiam contra o governo Dilma, o ex-presidente Lula, a esquerda e o PT a ofensiva que desencadeou o golpe de Estado em curso. Essa unidade burguesa em torno de um programa conservador e de restauração do neoliberalismo atua pelo impedimento definitivo da presidenta Dilma Rousseff e sustenta o governo ilegítimo e provisório de Michel Temer.
O programa e as primeiras ações do governo golpista, que dificilmente seriam aceitos pela população nas urnas, demarcam nitidamente o caráter de classe do golpe. Trata-se de um golpe contra a classe trabalhadora e marcado por amplos retrocessos da soberania, dos direitos sociais e das liberdades democráticas no país. O “plano Temer” alcança não só as realizações dos governos de Lula e Dilma, mas também avança contra direitos conquistados na Constituição de 1988 e contra a legislação trabalhista e as instituições públicas constituídas depois da República Velha.
Derrotar o golpe contra a soberania, a integração regional, a democracia, os direitos sociais e as liberdades
O golpe no Brasil deve ser situado em uma perspectiva geopolítica mais ampla, de instabilidade e intensificação de conflitos no plano internacional. Nos marcos da grave crise capitalista que se arrasta desde 2008, os Estados Unidos e seus aliados têm trabalhado contra o fortalecimento dos BRICS e a integração da América Latina como forma de deter o relativo declínio de sua hegemonia, a emergência dos países em desenvolvimento e de novos blocos de poder internacional.
Por meio dos chamados mega-acordos comerciais – como o TPP (Acordo de Parceria Transpacífica), o TTIP (Acordo de Parceria Transatlântica em comércio e investimentos) e o TiSA (Acordo sobre comércio de serviços) – as potências capitalistas buscam novas fronteiras de expansão do capital financeiro e das corporações transnacionais com a abertura econômica e desmonte dos Estados nacionais em áreas estratégicas como o comércio internacional de serviços, controle do fluxo de capitais, regulamentação do sistema financeiro, direitos de propriedade intelectual, compras governamentais, entre outros.
Esta ofensiva também engloba as respostas à crise que têm prevalecido em grande parte do mundo, submetendo povos e países a políticas de austeridade e retirada de direitos que agravam as desigualdades sociais, a dependência externa e a restrição das liberdades democráticas. O fato é que a conta da crise tem recaído sobre a classe trabalhadora e os setores populares, escancarando a barbárie capitalista. Segundo recente relatório da ONG internacional Oxfam, a riqueza apropriada pelo 1% mais rico do mundo equivale, pela primeira vez, à riqueza dos 99% restantes da população mundial. Em outras palavras, o 1% mais rico controla metade de toda a riqueza do planeta.
Na América Latina e no Caribe, os grupos e interesses apoiados pelos EUA na região estão em ampla contraofensiva contra os países e forças políticas que defendem um projeto de integração autônomo. A retomada das relações diplomáticas dos EUA com Cuba sem suspensão do bloqueio econômico, a adoção de tratados bilaterais de comércio com países da região e o apoio estadunidense a iniciativas como a Aliança para o Pacífico, a possível retomada de novas bases militares norte-americanas na região, as recentes derrotas eleitorais e plebiscitárias em países como a Argentina, a Bolívia e a Venezuela, e o golpe em curso no Brasil compõem um conjunto de iniciativas que buscam retomar a América Latina como área de influência subordinada aos interesses dos Estados Unidos.
A nomeação de José Serra, notório agente dos interesses do capital internacional no Brasil, como ministro interino das relações exteriores e o envolvimento cada vez mais evidente do Departamento de Estado dos EUA com o golpe no país apontam para a interrupção da política externa soberana e comprometida com a integração regional. Coerente com este propósito, Serra caracterizou em seu discurso de “posse” a política externa dos últimos anos como partidária, enalteceu acordos bilaterais de livre comércio e minimizou os esforços de integração regional, o papel do Mercosul, dos BRICS e da estratégia Sul-Sul.
Uma das principais frentes deste realinhamento do Brasil aos centros de poder do capitalismo nacional e internacional se dará por meio da entrega das riquezas nacionais e a privatização de setores estratégicos do Estado brasileiro. A orientação de “privatizar o que for preciso” é parte do DNA do golpe.
A Medida Provisória 727, enviada por Temer no primeiro dia do governo golpista, cria no âmbito da presidência da república o Programa de Parcerias de Investimentos – PPI, recepcionando integralmente o Programa Nacional de Desestatização que concebeu as privatizações criminosas da década de 1990, como a da Vale do Rio Doce. A MP estabelece a responsabilidade do PPI pela política de privatizações, concessões e parcerias público-privadas e prescreve um conjunto de normas que facilitam sua implementação. Prenuncia-se que a sanha privatista recairá não só sobre as estatais federais, mas também de forma destacada sobre estados e municípios. Para satisfazer estes interesses, também estão previstas a volta do BNDES como financiador e “corretor” da privataria e uma série de dispositivos que flexibilizam licenciamentos e proteções ambientais, urbanísticas, de terras indígenas, de patrimônios culturais, etc.
As áreas de infraestrutura e energia tendem a ser das mais afetadas pelo processo de privatização anunciado pelo governo provisório ilegítimo. Ministro do apagão elétrico do governo FHC, Pedro Parente foi indicado como presidente interino da Petrobras e anunciou como prioridade a revisão da lei da partilha do Pré-Sal e da política de conteúdo nacional. Com a medida, a Petrobras perderá a condição de operadora única nas áreas do pré-sal, a participação com pelo menos 30% nos investimentos dos consórcios de exploração de cada campo e poderá até mesmo retroceder ao regime de concessão, a depender da mudança legislativa apoiada pelos golpistas e pelos interesses das multinacionais do petróleo. Além disso, também foi anunciada a extinção do Fundo Soberano criado para receber recursos da exploração do pré-sal para educação, cujo saldo atual é de R$ 2 bilhões.
Na política econômica, as medidas já anunciadas pelo governo interino expressam a opção por um ajuste fiscal radical e retrocessos de grande monta. Entre as propostas, serão encaminhadas mudanças constitucionais e na legislação como a reforma da previdência, a imposição de um limite constitucional dos gastos públicos referenciado pela inflação do ano anterior, a desvinculação dos gastos constitucionais obrigatórios com saúde e educação e a transferência de recursos do BNDES para fazer caixa no Tesouro. Ademais, a despeito da cantilena da austeridade fiscal, os golpistas se empenham em criar condições para “pagar a conta” do golpe, como no “cheque em branco” da mudança da meta fiscal com déficit R$ 170,5 bilhões e na ampliação da Desvinculação das Receitas da União (DRU) para 30%, que retira recursos orçamentários indispensáveis das políticas sociais.
Articulando retrocessos imediatos com reformas estruturais de corte neoliberal, os impactos do governo golpista sobre os direitos são de desmonte da Constituição de 1988 e das políticas sociais dos últimos anos. Por um lado, extinguiram-se ministérios e áreas de governo relacionados à previdência social, cultura (parcialmente revertida pela luta dos movimentos sociais e culturais), mulheres, igualdade racial, juventude, direitos humanos, desenvolvimento agrário, moradia popular, comunicações, ciência e tecnologia, controladoria geral da União, entre outros.
Ao mesmo tempo, reformas estruturais como as da previdência e a trabalhista são anunciadas como prioridade e preveem retrocessos como a elevação da idade mínima para a aposentadoria, a desvinculação dos benefícios previdenciários em relação ao salário mínimo, a flexibilização dos direitos trabalhistas inscritos na CLT, a terceirização, a extinção da política de valorização do salário mínimo e a prevalência das negociações coletivas sobre os direitos trabalhistas legislados.
No mesmo sentido, o núcleo social da Constituição de 1988 – a seguridade social, que abrange as políticas sociais de saúde, previdência social e assistência social – sofre a maior ameaça de sua história. Além da citada proposta de desvinculação dos gastos constitucionais obrigatórios com o SUS e a educação, que representaria um sequestro bilionário do fundo público já insuficiente para a manutenção dessas políticas, o golpe avança no terreno da própria concepção dos direitos e da seguridade social.
A concepção destas políticas sociais como direito de todos e dever do Estado, dá lugar a ideia de que a seguridade social e as políticas sociais “não cabem no orçamento” e devem ser concebidas como serviços abertos à iniciativa privada. A universalização, a equidade e a integralidade do atendimento e acesso a esses direitos é substituída pela lógica residual, da focalização, dos seguros e planos privados.
As indicações na proposta do PMDB “Travessia Social – Uma ponte para o futuro”, por exemplo, de focalizar a proteção social para os 5% mais pobres, afetaria sensivelmente o alcance das políticas e direitos sociais. Em estudo elaborado pela Fundação Perseu Abramo é estimado que o impacto desta orientação sobre apenas uma das políticas, o Programa Bolsa Família, implicaria no corte do benefício para pelo menos 10,5 milhões de famílias em situação de pobreza.
Outra frente de retrocessos se dá contra as liberdades democráticas e os direitos humanos. A criminalização dos movimentos sociais e os retrocessos nos direitos e políticas públicas de mulheres, igualdade racial, de juventude, LGBT, indígenas, das pessoas com deficiência e dos direitos humanos em geral, aprofundam no âmbito do governo golpista os ataques que já estavam em curso com a pauta legislativa conservadora. Projetos como o Estatuto da Família; a proposta da “Escola sem partido”; a PEC 215; o Estatuto do Desarmamento; a redução da maioridade penal e o aumento do tempo de internação dos adolescentes no sistema socioeducativo; o PL 5069/13 relativo ao aborto que aumenta a criminalização das mulheres e dos profissionais da saúde; o Estatuto do nascituro; a redução da idade mínima para o trabalho; a descaracterização legal do trabalho escravo, entre outras propostas e iniciativas como a recém criada CPI da UNE, compõem uma agenda regressiva de direitos que deve ser enfrentada nas ruas e no Congresso Nacional.
Mudar o PT: um partido para tempos de guerra
Diante de um quadro tão grave, as forças democráticas e populares do país têm como centro tático de sua luta impedir que o impeachment alcance 2/3 de votos no Senado, derrotar os golpistas e retomar o mandato constitucional da presidenta Dilma a partir de um programa de mudanças e reformas populares. Para tanto, será necessário nas próximas semanas ampliar o apoio popular e da classe trabalhadora à mobilização contra o golpe, levando a luta de massa no país a criar condições para uma greve geral dos trabalhadores, intensificando a pressão junto aos senadores nas ruas e no parlamento e mobilizando global e setorialmente contra cada retrocesso do governo golpista.
Para enfrentar esses tempos de guerra, o Partido dos Trabalhadores deverá articular o amplo engajamento de suas direções e militância na luta contra o golpe ao mesmo tempo em que reorienta sua estratégia e linha política. O PT precisa mudar para estar à altura deste momento histórico. Fortalecer-se como partido socialista, militante e como organização comprometida com a unidade do campo democrático e popular que tem sido impulsionada pela Frente Brasil Popular, pela Central Única dos Trabalhadores e demais articulações, frentes e com a nova geração de lutadoras e lutadores sociais que têm ocupado as ruas contra o golpe e em defesa da democracia e dos direitos.
Nesse sentido, a realização do Encontro Nacional Extraordinário do PT deve impulsionar mudanças estratégicas, programáticas, de organização e direção partidária. A autocrítica sobre os rumos e opções do partido nos últimos anos deve vir acompanhada pela substituição da estratégia de conciliação que se esgotou com o golpe em curso por uma estratégia e programa democrático, popular e socialista. Para conduzir uma nova estratégia e linha política que articule a centralidade das lutas sociais com a organização de um partido militante e de massas e a disputa na institucionalidade a partir de um programa de reformas estruturais democráticas e populares, defendemos a mudança das atuais direções partidárias.
As eleições de 2016 devem ser encaradas como parte desta luta e “autocrítica na prática”, motivo pelo qual é fundamental o partido não capitular diante do rebaixamento programático, proibir alianças com partidos e lideranças golpistas e se preparar para campanhas municipais militantes e sem financiamento empresarial.
Para dar conta de tamanhos desafios, o Encontro Extraordinário do PT deve ser aberto, democrático e construído com muito debate desde as bases do partido. Por esses motivos defendíamos a realização de etapas municipais e estaduais e somos críticos à decisão da Comissão Executiva Nacional do PT de realizar um processo similar ao Processo de Eleições Diretas (PED) para a eleição das delegações nacionais do Encontro. Junto com as tendências partidárias que participam das reuniões do Muda PT, defenderemos no diretório nacional do partido a obrigatoriedade de realização dos encontros partidários nos municípios.
Bruno Elias é secretário nacional de movimentos populares do PT