Passados dezoito meses de governo de Donald Trump, é possível divisar melhor as linhas de continuidade e de mudança da política externa dos Estados Unidos. O 45º presidente do país atua em um contexto decontinuidade da crise capitalista e de declínio relativo da hegemonia dos EUA no mundo. De governos anteriores, herdou guerras na Síria, Afeganistão, Iraque e Líbia e encontrou disputas com outros polos de poder em ascensão. Em outras frentes, seu governo tem rompido acordos, reorientado alianças e aberto novos conflitos políticos, econômicos e militares.
Dez anos depois da quebra do banco Lehman Brothers, o comando da economia dos EUA segue nas mãos do capital financeiro e do 1% responsável pela crise de 2008. Mesmo com o modesto crescimento econômico dos últimos meses, a economia estadunidense têm perdido posições internacionais e a classe trabalhadora segue pressionada por condições precárias de trabalho e salário, bem como pelo endividamento. Adesindustrialização, os acordos comerciais transnacionais e a retirada de direitos trabalhistas promovidos por governos democratas e republicanos nos últimos anos resultaram em ampliação da pobreza e do desemprego, criminalização dos trabalhadores imigrantes e desmonte da organização sindical.
O discurso populista de Trump, que denunciava em campanha as “elites políticas de Washington” como responsáveis pelo quadro de deterioração do “poder americano”, deu lugar a um governo dominado por egressos do sistema financeiro e por políticos e militares conservadores. Na Casa Branca, o republicano elevou o orçamento militar, reduziu a regulamentação financeira e os impostos para os ricos, atacou programas de seguridade social e deflagrou uma política de “tolerância zero” contra os imigrantes, inclusive com a separação de crianças de suas famílias na fronteira com o México.
A prometida restauração da grandeza e da primazia internacional dos EUA, resumida no lema America First (“América em primeiro lugar”), tem se traduzido em confronto com outros países e organizações internacionais. Colocando em xeque parte da própria arquitetura internacional liderada pelo país no pós-guerra, os EUA abandonaram o acordo climático de Paris e se retiraram da Unesco, do Conselho de direitos humanos da ONU e do pacto mundial para migrantes e refugiados. Por conta do que o governo tem chamado de “práticas comerciais injustas”, os EUA se desligaram do Acordo Transpacífico (TPP), atacam regularmente as regras atuais da OMC e do NAFTA e iniciaram uma guerra comercial de tarifas contra produtos importados da China e contra o aço e alumínio da União Europeia, do Canadá e do México.
Nessas investidas, nem mesmo as alianças tradicionais dos EUA têm sido poupadas. Trump praticamente implodiu as últimas cúpulas do G7 e da OTAN, realizadas em junho deste ano. Na reunião do G7, pressionou os países do grupo pela redução de tarifas sobre produtos estadunidenses e se negou a assinar uma declaração final crítica ao protecionismo comercial. Na Conferência da OTAN, cobrou publicamente dos membros da aliança militar transatlântica a elevação de seus orçamentos nacionais de defesa para pelo menos 2% do PIB.
Na narrativa do republicano, a condição de “superpotência solitária” alcançada ao final da guerra fria levou os Estados Unidos a uma injusta repartição de responsabilidades com seus aliados e a uma complacência com seus rivais e concorrentes geopolíticos. Nas últimas duas décadas, estes teriam se aproveitado das instituições internacionais e do comércio global para se fortalecerem em detrimento dos interesses estadunidenses no mundo. Ao subestimar as novas ameaças à sua segurança econômica e superioridade militar, o país teria enfraquecido sua liderança internacional.
Esta leitura é enfatizada na última Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos, publicada em dezembro de 2017. O documento, que descreve como objetivos dos EUA “proteger o povo americano e preservar o nosso modo de vida, promovendo a nossa prosperidade, preservando a paz através da força e promovendo a influência americana no mundo”, identifica a China e a Rússia como “potências revisionistas” que desafiam a ordem internacional liderada pelo país. Questões vitais como o poder do dólar como moeda de reserva internacional, a disputa pela superioridade militar e o domínio das fontes de energia contribuem para este reposicionamento geopolítico.
De fato a China, a Rússia e outros países do Sul global tem procurado caminhos soberanos para seus projetos de desenvolvimento, inclusive acelerando iniciativas de desdolarização de suas economias e fortalecendo transações financeiras em suas próprias moedas nacionais. Além disso, os chineses têm dado passos consistentes de modernização científica e tecnológica de seu desenvolvimento (projeto Made in China: 2025) ao tempo em que trabalham para construir uma “sociedade moderadamente próspera” até 2020. A Rússia, por seu turno, voltou ao centro do tabuleiro internacional ao restabelecer um novo equilíbrio militar estratégico com os EUA, que tinha sido perdido com o colapso da União Soviética e com a pilhagem neoliberal dos anos 1990.
A chamada estratégia dos Estados Unidos para o Indo-Pacífico visa deter exatamente o dinamismo dessa integração eurasiática. Para tanto, tensionam as disputas territoriais no Mar do Sul da China, opõem-se à política chinesa em relação a Taiwan e buscam uma cooperação quadrilateral com Japão, Austrália e Índia que diminua a influência do gigante asiático. Por sua vez, depois de crescentes tensões em 2017, o conflito na península coreana desescalou nos últimos meses. Em abril, as duas Coreias firmaram na Declaração de Panmunjon compromissos de paz e desnuclearização que seriam ratificados dias depois em Cingapura, em histórica reunião de Kim Jong-un com Donald Trump.
Em relação à Rússia, Trump se reuniu em julho com o presidente russo Vladimir Putin num momento em que, segundo o próprio presidente dos EUA, as relações “nunca estiveram piores”. Apesar da forte oposição interna contra esta aproximação, Trump ensaia uma normalização de parte das relações diplomáticas com os russos, que têm recebido sanções dos EUA e de seus aliados desde o referendo popular na Crimeia, em 2014, que decidiu pela separação da Ucrânia e integração ao território russo. Além disso, Rússia e EUA compartilham interesses em uma série de temas sensíveis, que incluem a resistência russa à expansão da OTAN em direção às suas fronteiras no leste europeu, acordos para o controle de armas e os desdobramentos da guerra na Síria.
Nesta última, o apoio da Rússia ao governo sírio de Bashar al-Assad, que já contava com o engajamento do Irã e do Hezbollah libanês, mudou o curso do conflito que se estende há sete anos. A situação é desfavorável tanto para os terroristas do “Estado islâmico” e da seção da Al-Qaeda na região quanto para a oposição síria apoiada pela OTAN, por Israel e pela Arábia Saudita. A Turquia, outro país relevante no teatro de operações sírio, tem mantido divergências crescentes com os EUA. Apesar de membro importante da OTAN, a Turquia negocia a compra de sistemas de defesa antiaérea russos, ataca posições curdas apoiadas pelos EUA e tem participado com a Rússia e com o Irã de negociações próprias sobre a guerra na Síria.
Ao fim e ao cabo, os principais aliados dos Estados Unidos no Oriente Médio têm sido Israel, a Arábia Saudita e outras monarquias do Golfo. Aliás, a postura de alinhamento incondicional dos EUA com os israelenses, em medidas como a transferência de embaixada para Jerusalém e na cumplicidade com a colonização do território e com o massacre de palestinos perpetrados por Israel, tem inviabilizado na prática a solução de dois Estados para a questão palestina e o processo de paz.
Neste contexto, ao lado do “jihadismo terrorista”, o Irã é considerado pelos EUA uma das principais ameaças à sua segurança nacional. As acusações de que o país persa “patrocina o terrorismo” em outros países e desenvolve mísseis balísticos e armamento nuclear levaram os EUA a romperem unilateralmente com o acordo nuclear de 2015 e a retomarem as sanções econômicas e diplomáticas contra os iranianos. Como pano de fundo dessa disputa, está o papel estruturante do Irã nas “novas rotas” chinesas e a sempre presente questão energética de uma região que concentra parte expressiva dos fluxos de petróleo e gás do planeta.
Na América Latina e no Caribe, por sua vez, a política externa dos EUA em tempos de Trump tem combinado o velho big stick do militarismo e da violência política com os novos tipos de golpes de Estado e guerras híbridas. Governos neoliberais tentam realinhar a região como patio trasero dos Estados Unidos, entregando setores econômicos estratégicos e riquezas naturais para as corporações transnacionais e abrindo nossos territórios para a implantação de bases e operações militares dos EUA, sobretudo nas estratégicas regiões da Amazônia e do Aquífero Guarani.
Em ofensiva contra as forças populares e de esquerda, o governo Trump impôs retrocessos nas tentativas de normalização das relações com Cuba. Ao lado da ilha socialista, a Venezuela e mais recentemente, a Nicarágua, tem sido alvos de permanentes guerras econômicas, psicológicas e de tentativas de desestabilização por parte das elites locais e pelo governo dos EUA. Supostamente em nome do combate à corrupção, os EUA têm firmado “cooperações internacionais” de seu Departamento de Justiça com setores do sistema de justiça dos países da região para usar os meios jurídicos como armas de guerra (lawfare) contra lideranças políticas da esquerda. O caso mais emblemático é a prisão política do ex-presidente Lula, sem crime e sem provas, com o objetivo de impedi-lo de concorrer e vencer as eleições presidenciais deste ano no Brasil.
Portanto, a despeito do aparente desatino de algumas declarações e “tuítes” presidenciais, a política externa de Trump é uma expressão concreta dos interesses imperialistas e do complexo militar industrial estadunidense. Historicamente, o imperialismo dos EUA alternou períodos de maior ou menor isolacionismo, intervencionismo e protecionismo econômico.
No condensado panorama deste texto, nota-se que a atual política externa dos EUA é um sintoma não só da decadência, mas também da reação do imperialismo estadunidense ao surgimento de polos alternativos de poder internacional. Acossados pela perspectiva do próprio declínio, o imperialismo dos Estados Unidos se torna ainda mais perigoso para os povos de todo o mundo. Nossa contribuição brasileira, latino-as de nossa região na luta contra o imperialismo e pela integração de Nuestra America.
Por Bruno Elias, assistente social e militante do Partido dos Trabalhadores