Partido dos Trabalhadores

Cantalice: O enfrentamento necessário para o aprofundamento da democracia

Em artigo, o diretor da Fundação Perseu Abramo aborda a conjuntura política nacional. “As forças progressistas não derrotarão Bolsonaro optando por atuar com os olhos no retrovisor. Será preciso demonstrar que estamos diante do dilema entre civilização e barbárie”, escreve

Sheyla Leal

Alberto Cantalice, diretor da Fundação Perseu Abramo

Alberto Cantalice

O isolamento social em decorrência da pandemia da Covid-19, que dificultou profundamente as relações sociais presenciais, permitiu o exame e o reexame dos temas candentes da nossa era. Um tema que nunca deixou de fazer parte do imaginário brasileiro e se apresenta com a assunção ao governo de Jair Bolsonaro, de forma cada vez mais enfática, é o autoritarismo.

Claro está que esse fenômeno não é um malefício só dos trópicos. Donald Trump, comandando os Estados Unidos é um exemplar muito mais representativo do que seu arremedo em Brasília.

É lamentável constatar que o chamado “novo normal” não tem nada de novo, emerge qual estouro de boiada em um individualismo, e causa espécie aos utopistas da modernidade. Agora, sem dúvida, o choque maior foi para os defensores do ultraliberalismo, aqueles que querem a todo custo retirar do Estado o papel de salvador em última instância das hecatombes proporcionadas pelo capitalismo sem amarras. Sem o socorro dos organismos da esfera pública, os países sucumbiriam à lógica da barbárie propugnada pela escassez dos recursos básicos de sobrevivência para as maiorias das populações.

No caso do Brasil, os estragos advindos da pandemia só não foram efetivamente mais devastadores graças à reação da sociedade civil e os freios e contrapesos colocados pelo Congresso Nacional e pelo Supremo Tribunal Federal, nos desatinos do presidente e de sua equipe. Primando pelo anticientificismo terraplanista, o governo brasileiro virou chacota internacional e exemplo de como não se deve proceder.

A derrocada econômica que veio na esteira do vírus obrigou o governo por pressão da sociedade a empreender iniciativas que minorassem o impacto da crise.

O auxílio emergencial que as oposições proponham que fosse do valor de um salário-mínimo vigente e a dupla Bolsonaro-Guedes insistia em R$ 200, e que depois de muita luta e negociação chegou-se no valor R$ 600, tornou-se um “cabo de guerra” nas hostes palacianas. O presidente escorado no aumento da popularidade que adveio da execução do auxílio advoga mantê-lo com o valor reduzido até o final de 2020. Já a equipe econômica, avessa a qualquer forma de benefício estatal, queria extingui-lo.

A questão suscitada pelo referido auxílio emergencial pôs a nu a pornográfica concentração da renda e de riqueza brasileira e demonstrou que a ausência de uma política estrutural de distribuição dos recursos escassos da economia nacional serve para perpetuar na miséria largas margens da população, mantendo o velho ciclo de dependência de vastos setores das periferias brasileiras.

No célebre estudo Geografia da Fome, o grande brasileiro Josué de Castro já pontuava a influência exercida por pequenas concessões para quem nada tem. Esse diagnóstico histórico persiste atual no cotidiano do país. Lamentavelmente, ainda nos deparamos com o chamado voto de clientela, do apadrinhamento na busca do socorro imediato, que ao livrar o indivíduo do infortúnio imediato o transforma em caudatário desse moto-contínuo.

Lamentavelmente, não conseguiram as forças progressistas nos 14 anos no comando da nação romper esse círculo vicioso. Apesar de promover a maior inclusão de brasileiras e brasileiros no orçamento da União. Não foi possível ao longo desses anos se estabelecer uma cultura democrática e cidadã que perpassasse os mais largos setores da vida nacional. Contribuiu para isso, o atraso secular e a marginalização de largos setores da população, apartados da presença do Estado.

Romper esse ciclo demandaria a execução de uma política econômica que privilegiasse o desenvolvimento nacional; fomentasse a ciência, tecnologia e inovação; revolucionasse a educação brasileira com o foco no ensino básico, fundamental e profissionalizante; alargasse a produção da cultura.

É preciso rever a aplicação do modelo de segurança pública vigente no país. A insana guerra às drogas longe de produzir efeitos práticos promoveu a lógica do encarceramento em massa da juventude. Essa miopia criou um verdadeiro “exército de reserva” para as grandes organizações criminosas e transformou os presídios em verdadeiras universidades do crime.

Como paradoxo dessa guerra burra, a nossa polícia é a que mais mata e a que mais morre no mundo. É preciso separar o pequeno delito do crime grave. Buscar penalidades alternativas para a incidência desses crimes e infrações de menor potencial ofensivo, deixando a cadeia para que os verdadeiros criminosos paguem por seus crimes.

Outro dado a se lamentar é o excesso de prisões provisórias. Perto de um terço dos presos brasileiros não tem condenação, o que na prática é uma burla da Constituição.

Aprofundar a democracia

Aprofundar a democracia não é tarefa fácil. Não à toa é pouca experiência de democracia no solo pátrio. Vale lembrar que a chamada “tutela militar” assombra brasileiros e brasileiras, desde a Proclamação da República, em 1889. Um exemplo cristalino é a militarização das chamadas polícias militares, uma das heranças da ditadura militar instalada em 1964 e que persiste até os tempos atuais.

Subsiste a captura da esfera pública. Visto como um avanço civilizatório pelos constituintes de 1988, o advento da meritocracia rompeu a prática do compadrio na aquisição de sinecuras e benefícios estatais. Saíram os apaniguados e “afilhados” dos poderosos de ocasião e emergiu os profissionais concursados.

A emergência da chamada “meritocracia”, inegavelmente um avanço, foi também o embrião do qual se gestaram castas burocráticas no serviço público completamente divorciadas do cotidiano popular. Nesse ambiente nascem os juízes justiceiros, promotores e procuradores celebridades, que ao arrepio do estado democrático de direito aplicam suas próprias regras. Esse afastamento da realidade concreta do país e seu desprezo pelos instrumentos da democracia fazem com que esses agentes se sintam acima da sociedade.

A redemocratização do Brasil pressupõe a revogação dos atos perpetrados pelo golpe de 2016. Essa revogação seria promovida por meio de referendo popular democraticamente convocado pelo parlamento precedido por amplo debate público.

É preciso resgatar o espírito democrático da Constituição de 1988, tão vilipendiada pelos poderosos da ocasião. Fora disso só o restabelecimento do velho e surrado “pacto das elites”, cujo pressuposto básico é a exclusão da grande massa da população das decisões nacionais.

Um adversário difícil

Cavalgando um discurso reacionário e beligerante, Bolsonaro consegue falar para uma grande parcela de eleitores. Sua retórica encontra eco, e não era de se estranhar, naqueles setores da população identificados historicamente com o ideário conservador. O machismo, o racismo velado e a homofobia. O apelo às armas e a eliminação dos “indesejáveis” bem como as questões de fundo religioso permeiam sua pauta e falam diretamente com esses segmentos conservadores.

Não o derrotaremos optando em atuar com os olhos no retrovisor. Será preciso um esforço das forças progressistas no sentido de reconquistar parte dos setores médios brasileiros que hoje é refratária a nós. Será preciso demonstrar que estamos diante do dilema entre a civilização e a barbárie. Entre a incorporação a uma vida digna de milhões de excluídos de excluídos ou o apartheid social.

Não será fácil. Mas, honestamente, o que foi fácil nessa história de vitórias, derrotas, mais derrotas que vitórias, na longa tradição da esquerda brasileira?

O desafio começa agora em 2020.

 

Diretor da Fundação Perseu Abramo e membro do Diretório Nacional do PT