Aqueles que trabalharam por uma vida e hoje (sobre)vivem das aposentadorias, e todos os que pretendem um dia se aposentar têm pouco a comemorar, e muito a se preocupar e temer, no Dia dos Aposentados, celebrado nesta quinta-feira (24). A reforma da Previdência, panaceia do mercado financeiro, é uma obsessão do ministro da Economia, Paulo Guedes, o “Posto Ipiranga” de Jair Bolsonaro (PSL).
Mas apesar da insistência no tema, que domina o noticiário econômico em todos os meios, pairam mais dúvidas que certezas sobre as mudanças que Guedes e Bolsonaro devem propor para as aposentadorias. A única certeza é o modelo de capitalização, que deve ceder aos bancos o controle das aposentadorias.
O novo governo vai apresentar um novo projeto ou deve aproveitar a proposta de reforma apresentada pelo governo Michel Temer (PMDB)? Militares estarão dentro ou passarão ilesos? E a classe política? Servidores públicos terão direitos ameaçados? O Poder Judiciário, pródigo em angariar pensões e benefícios, vai escapar ou vai contribuir?
Representantes do governo disparam afirmações desencontradas, que servem apenas para confundir, e denotam falta de capacidade na articulação do novo governo. As perguntas devem ser respondidas na próxima semana, quando o governo deve apresentar os parâmetros da sua reforma, após retorno da viagem do presidente Bolsonaro à Suíça, onde teve constrangedora participação no Fórum Econômico Mundial, em Davos.
Outra certeza é que o governo vai tentar instituir uma idade mínima para acessar as aposentadorias. No início do ano, Bolsonaro chegou a falar em 62 anos para os homens e 57 para as mulheres. O mercado fez cara feia, pois com isso teria de antecipar os pagamentos, já que tinha feito os (lucrativos) cálculos com base nos 65 anos para eles e 62 para elas, como previa a proposta do governo Temer.
Mas circulam ainda outras propostas na mesa de Guedes, com idades mínimas diferentes, até mesmo sem diferenciar homens e mulheres. O período de transição para que as novas regras entrem em vigor, também varia conforme as propostas. Fala-se em dez, 12, 15 ou até 20 anos.
Mas todos esses critérios ganham menor importância frente à drástica mudança que representa o modelo de capitalização. De inspiração chilena, implementado durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-90), a capitalização prevê que o trabalhador deposite individualmente a sua contribuição numa espécie de poupança, que vai acumular rendimentos, que serão resgatados quando o indivíduo se aposentar.
Quebra-se, assim, com o sistema de repartição, em que trabalhadores da ativa, somada à contribuição das empresas e do Estado, financiam o pagamento daqueles que já se aposentaram, formando, ao menos em tese, um círculo virtuoso. Quem paga hoje, receberá amanhã, e quem recebe hoje é porque pagou ontem, e assim por diante.
Mas o que acontece hoje, como resultado da capitalização no Chile – onde o trabalhador contribui com 15% do seu salário, e nem os empresários nem o Estado contribuem – é que 79% dos aposentados recebem menos que um salário mínimo, condenando os chilenos a viverem o fim da vida na miséria e penúria.
Entre as consequências, o país registra um aumento alarmante do número de idosos que cometem suicídio. Enquanto isso, os fundos de pensão que administram o sistema de previdência capitalizada, todos estrangeiros, controlam um montante correspondente a 80% do PIB do país.
Bom para os bancos
“O essencial por trás de tudo isso é pegar o dinheiro que é transferido para os aposentados e coloca-lo na mão dos banqueiros. Esse é o eixo do sistema de capitalização”, explica o economista Ladislau Dowbor, autor do livro “A Era do Capital Improdutivo” (Outras Palavras & Autonomia Literária). “O eixo básico é reduzir o acesso aos benefícios de uma aposentadoria minimamente decente, liberando dinheiro para os banqueiros. Simplesmente, o efeito indireto é o mesmo do teto de gastos, que também reduz o acesso da população em geral, em particular os mais pobres, aos recursos da União. O efeito é a concentração de renda.”
Para Dowbor, que também é professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, propor o sistema de capitalização num país marcado pela desigualdade, como o Brasil, é “vergonhoso”, “burro” e “explosivo”. “Em termos éticos, é vergonhoso. Em termos sociais e políticos, é explosivo. Em termos econômicos, é burro, porque se reduz ainda mais o mercado interno, travando a capacidade de expansão das empresas, que não vão ter para quem vender. Quando se reduz a capacidade de consumo da população e a atividade empresarial, reduz-se também os impostos, agravando o déficit fiscal. Portanto, são políticas essencialmente erráticas.”
O economista cita estudo divulgado no final do ano passado, encomendado pela Associação Nacional dos Participantes de Fundos de Pensão (Anapar), que revela que apenas 13% da população poupa com regularidade, economizando em média R$ 285 ao mês. “Fica claro que o grosso da população não tem o que poupar. Na realidade, tem gente que guarda muito, e o grosso da população não guarda coisa nenhuma.” Soma-se ainda a informalidade.
Para Dowbor, o sistema proposto por Guedes teria tudo para funcionar, mas em países como a Suécia e Dinamarca. “O sistema de capitalização é um negócio que funciona quando se tem uma renda relativamente elevada, salário regular, contrato etc. Agora, tirando a participação empresarial e do Estado, a conta não fecha. Um regime de capitalização quando o pessoal não tem capital, é algo ridículo.”
Convulsão social
O Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP) também é contra o sistema de capitalização integral. Ainda que o governo estabeleça um piso, excluindo os trabalhadores que ganham menos (até um ou dois salários mínimos, critério também indefinido), o sistema defendido por Guedes ameaça a Previdência Social como um direito, previsto na Constituição Federal. O trabalhador ficaria, além de tudo, exposto aos humores e flutuações do mercado de capitais.
“Os trabalhadores vão acabar se aposentando com muito menos de um salário mínimo. E ainda vai depender do êxito ou da falha dos investimentos a serem realizados pelo fundo. E se o o investimento se mostrar um erro? Se for o Paulo Guedes que estiver investindo, por exemplo – que já foi processado por quebrar vários fundos – se quebrar esse fundo, quem vai pagar?”, ironiza o diretor do IBDP Diego Cherulli, advogado e professor de Direito Previdenciário na Universidade de Brasília (UnB).
“Hoje, quando você é segurado do INSS pelo regime geral (RGPS), de repartição, se você ganha, por exemplo, R$ 1 mil, vai pagar 8% sobre esse valor. Seu empregador vai pagar mais 20%. O Estado também deveria, mas não contribui. É o que eles chamam de déficit. Quando for se aposentar, vai receber a média daquilo que recebeu, não apenas o que depositou. No sistema de capitalização, é o contrário. Vai contar apenas aquilo que depositou, mais o rendimento. E o empregador não necessariamente é obrigado a contribuir, a menos que se coloque uma cláusula em acordo de convenção coletiva”, explica o professor.
Ele diz, baseado na experiência chilena – que inclusive começa a rever o modelo de capitalização – que esse é um modelo feito para não durar, com consequências alarmantes para toda a ordem social. “Não é ser Nostradamus, mas a consequência daqui algumas décadas é o Estado ter que cuidar da Previdência de novo, para não deixar a sociedade morrer na miséria. Essas pessoas não vão ter aposentadoria. Para resguardar a ordem social, o Estado vai ter que retomar a Previdência, sem um centavo de receita, porque durante esse período, quem ficou com o dinheiro foram os bancos.
“Do ponto de vista do direito, a capitalização integral é totalmente inconstitucional, porque gera desordem social e desproteção. Além do que, a Previdência Social, no modelo que temos hoje, é um direito social”, afirma Cherruli, que diz ainda que o IBDP está pronto para questionar o modelo na Justiça, caso a proposta seja aprovada no Congresso Nacional.