Partido dos Trabalhadores

Caravana revela Brasil rumo à barbárie, mas também seu antídoto

Um relato de Rodrigo Ratier: jornalista que acompanhou de perto a Caravana Lula pelo Brasil

Reprodução Facebook

Rodrigo Ratier: "O dia que começou tenso, ficou violento e poderia terminar em tragédia, acabou em paz"

Há algo de frágil na figura de Lula em cima do palanque modesto na praça Coronel Bertaso, em Chapecó (SC). O ex-presidente é hoje um senhor de 72 anos, cabelos grisalhos e cada vez mais ralos, a pele flácida na altura do braço. Chove muito e, em determinado momento, ele é o único fora da parte coberta do palco. Oferecem-lhe um guarda-chuva, ele recusa.

Tira o blaser, expõe a camiseta preta. Aceita um boné e começa a discursar. Continuaria pelos 43 minutos seguintes. Tem a atenção de algo em torno de 2 mil simpatizantes. É alvo da ira de cerca de uma centena. O grupo protesta com vuvuzelas e buzinas, mas também – fato inédito na história política do Brasil pós-ditadura – com violência. Ovos, pedras e rojões miram os militantes petistas. Há algo de frágil na figura de Lula porque, do alto do palanque em Chapecó, ele é também um alvo.

Foi assim durante na maioria dos 10 dias, em 2,7 mil quilômetros. Algum grau de tensão era esperado, mas poucos poderiam prever que a caravana do ex-presidente pela região Sul se transformasse em um pesadelo. Pesadelo longo e de terror crescente, em que cada nova escala parecia competir com a anterior pela primazia em em violência e intolerância.

Segue um resumo, na ordem do roteiro de viagem, segundo o relato de ocupantes dos 3 ônibus da comitiva do ex-presidente.

Bagé (RS): primeira escala e vitrine dos ataques, com ruralistas levando máquinas agrícolas para a frente do campus da Unipampa. A polícia faz vista grossa para arremesso de ovos, paus e pedras, atitude que se repetiria ao longo da caravana.

Santa Maria (RS): confronto entre a militância petista e opositores, que chegam a desferir golpes de chicote.

São Borja (RS): caravana atacada com ovos (muitos) e pedras (poucas).

Cruz Alta (RS): 4 mulheres, militantes petistas, são agredidas a caminho do ato com chutes e relho, uma espécie de chicote. Uma das feridas teve hemorragia no rim.

Passo Fundo (RS): manifestantes fecham a estrada e comandante da Brigada Militar (a PM do Estado) diz que não poderia garantir a segurança da caravana. O evento é cancelado.

São Miguel do Oeste (SC): ataque violento à caravana, com pedras, paus, barras de ferro e chutes nos carros. Há crianças participando da ação. A polícia rodoviária, presente no local, não toma atitude.

Francisco Beltrão (PR): bloqueio de acesso, arremesso de ovos e pedras. A polícia, pela primeira vez na caravana, libera a passagem investindo contra os manifestantes com bombas e tiros de borracha.

Foz do Iguaçu (PR): uma pedra fere o padre Idalino Alflen.

Trajeto entre Quedas do Iguaçu e Laranjeiras do Sul (PR): auge das tensões, com um atentado a tiros, sem vítimas, contra 2 dos 3 ônibus da comitiva petista.

E, no meio do caminho, houve Chapecó. Município polo do oeste catarinense, lar de 213 mil pessoas, sede de algumas das principais empresas processadoras e exportadoras de carnes do País. A passagem da caravana por lá foi exemplar. Não por protagonizar o episódio mais agudo de violência – ao que tudo indica, a posteridade atribuirá o título ao ataque a balas de 27 de março –, mas por reunir elementos capazes de explicar como chegamos ao Brasil sombrio e bárbaro revelado pela viagem do ex-presidente à região Sul.

No sábado, 25 de março, um quarteirão da avenida Getúlio Dornelles Vargas, a principal via da cidade, se transformou num microcosmo desse novo e estranho país, curtido em ódio e violência.

O clima de conflito foi gestado ao longo da semana. No centro e na rota para o aeroporto, 8 outdoors estampam uma imagem de Lula atrás das grades e o carimbo “condenado”. Em mensagens de Whatsapp interceptadas pela militância petista, opositores discutem ações impedir que o ex-presidente pise na cidade. Fala-se em bloqueios de via e queima de pneus. Discute-se também o tráfego aéreo.

Numa cidade que luta para cicatrizar as feridas do desastre de avião que vitimou 71 pessoas e um time inteiro de futebol em 2016, alguém sugere interromper a pista de pouso, jogando objetos para impedir a aterrissagem da aeronave com Lula.

No sábado, as tensões começaram cedo. São 10h da manhã, 2 tratores se postam diante da praça onde ocorreria o comício. Na pá escavadeira de um deles, a faixa “Intervenção Cívico-Militar”. O Batalhão da 4ª Região da Polícia Militar fica do outro lado da avenida, mas não há policiais na rua.

Um grupo de seguranças da caravana se aproxima dos tratores. Estão à paisana. Começa a discussão. Alguém se aproxima e arranca a faixa, o tubo que a sustenta vira arma contra os motoristas da máquina, que manobram rápido em retirada. A confusão aumenta e um manifestante é agredido a chutes. A polícia chega, o grupo de opositores se afasta e atravessa a rua.

Um militante petista aprova a ação. “Se não mostrar força, eles vem para cima de nós.” Ao longo do dia, foi a única demonstração de violência ativa dos militantes petistas, que a partir de então adotam estratégia de autodefesa. Como se verá, os episódios de agressão são desproporcionalmente mais numerosos, frequentes e graves do lado dos manifestantes. Não há comparação possível.

Divididos pelo asfalto e uma fita plástica estendida pelos policiais. É assim que os 2 grupos, de ideologias e origens sociais distintas, vão permanecer ao longo do dia. Os opositores, que no pico chegam a ser algo em torno de 100 pessoas, são sobretudo jovens brancos, ostentando camisetas do Brasil, de Bolsonaro ou da Chapecoense (o uniforme do time é onipresente na cidade).

Há também algumas senhoras na casa dos 50 anos. Um professor de História do lado petista ajuda a identificar algumas figuras. Segundo ele, há policiais à paisana, funcionários comissionados da prefeitura, professores de artes marciais e empresários.

Os manifestantes atendem à convocação de conservadores e de extrema direita que organizaram o evento nas redes sociais. São relativamente pequenos. Os dois mais numerosos, Endireita Brasil – Chapecó e Chapeco e o Brasil contra a Corrupção têm, respectivamente, 4,1 mil e 3,8 mil seguidores. O site do Endireita anuncia o protesto diante da loja Havan, num local a 650 metros da praça Coronel Bertaso. Um internauta comenta no perfil do grupo: “Eu vi um evento que não é do PT marcado para ser lá [na praça]”. Os administradores. “É do MBL, não sei de onde saíram. Mas vamos seguir os protocolos de segurança e será na Havan.” Não seguiram – e se postaram diante do local reservado para o comício junto à prefeitura três dias antes.

Os militantes pró-Lula são mais diversos. Há muito mais mulheres, negros e pardos. Trajam camisetas do partido, de movimentos sociais (sobretudo MST) e de sindicatos. A eles se somariam indígenas das aldeias da cidade – a região de Chapecó tem áreas indígenas da nação caingangue. Famílias inteiras trabalham na praça como ambulantes, vendendo artesanato indígena e flores de macela, usadas em chás calmantes. Ao longo do dia, a presença de público não ligado a movimentos sociais foi aumentando até chegar a cerca de 2 mil pessoas.

A tarde transcorre algo patético, com os militantes se encarando e gritando palavras de ordem para o lado contrário. Entre os petistas: “Lula, guerreiro do povo brasileiro”, “Facistas, fascistas, não passarão”. Entre os opositores: “Lula, ladrão, seu lugar é na prisão”, “Bolsonaro” e “Uh, é a PM”. Loas à Polícia Militar têm razão de ser. Alguns instantâneos da ação policial:

1. Os manifestantes contrários a Lula se postam atrás das viaturas policiais. Estas ficam o tempo todo viradas para os simpatizantes do ex-presidente. Dois novos furgões que fazem baliza diante do grupo são aplaudidos.

2. Uma dupla de manifestantes corre pela avenida carregando duas caixas de papelão branco. Na lateral de cada uma, se lê: “contém 30 dúzias de ovos”. Estão a alguns passos da tropa. Um militante petista avisa um policial, que pergunta: “De que lado você está?” Aponta a praça com os simpatizantes. Ovos voam em direção ao palco.

Os agressores estão visíveis, são facilmente identificáveis. A polícia não toma providência. Exceto quando um rapaz do lado petista tenta acertar os manifestantes como uma pedra de gelo. É perseguido por dois policiais e precisa correr para dentro da praça para evitar ser detido.

3. Apoiador petista envolvido em briga com apoiadores de Bolsonaro é detido por policial. “Mão na cabeça, encosta na parede”, diz, desferindo em seguida uma joelhada no baço. “Não precisa disso, senhor”, responde o petista. Sob a mira da escopeta calibre 12 carregada com balas de borracha, ouve do oficial: “Não precisa o caralho, aqui é Bolsonaro, seu filho da puta.”

Outra recorrência é a provocação com base na origem dos militantes petistas. “Não tem ninguém da cidade aí”, grita um manifestante, rechaçado por chapecoenses do lado vermelho. Um militante nordestino comenta: “Parece que estamos em outro país. Acho que eles não gostam de brasileiro por aqui.”

Cai a noite e a violência aumenta. Ovos cortam o céu em direção à praça. O cheiro se torna forte e o asfalto, escorregadio. Um homem gordo de boné, que maneja rojões desde o início da manifestação, passar mirar os manifestantes. A iminência da chegada de Lula provoca correria. O foco da ação passa ser o hotel Bertaso, onde o ex-presidente se hospedaria.

Pessoas que saem do hotel são hostilizadas e agredidas. O sangue escorre da cabeça de um militante atingido por bomba. O ex-deputado petista Paulo Frateschi tem a orelha macerada por uma pedra. Os jornalistas Eleonora e Rodolfo de Lucena são atingidos por socos, ovos e pontapés.

Quanto a Lula, seu carro teve o caminho bloqueado por manifestantes no acesso principal do aeroporto. Precisou tomar uma estrada vicinal para chegar à cidade. No hotel, com a porta principal bloqueada por opositores, precisou sair pela garagem, escondido dos manifestantes.

Por volta, das 21h, começa a falar. Está inspirado. Constrói o discurso com autoelogios a seus governos, historias familiares, promessas de políticas públicas para os mais pobres e causos da época da presidência. Por várias vezes, se dirige aos manifestantes. Primeiro, com ironia. “Eu nunca tive direito de ter um rojão na minha campanha, agora estou percebendo que a oposição está soltando rojão em minha homenagem. Eu tô feliz porque nunca tive tanto rojão na minha vida.”

Acho bom guardarem rojão para soltarem na minha vitória”. No fim da fala, subindo o tom. “Nós somos paz e amor, mas não pensem que vão bater nessa face e a gente vai dar essa [a outra] face. A gente vai dar é porrada se não respeitar a gente. Nós não queremos brigas, mas não fugiremos delas. Aprendam, seus fascistas, a fazer democracia, a respeitar a pluralidade, a convivência democrática na adversidade. Porque senão o ódio vai prevalecer e o ódio não conduz uma nação à nada.”

Fim do comício. A plateia se dispersa quando Marcio Macedo, coordenador da caravana, pega o microfone: “Pessoal, o Lula quer ir voltar andando até o hotel. Vamos fazer um cordão para ele ir em segurança?” Os militantes olham para o fundo. Restam apenas cinco manifestantes, todos muito jovens, assistindo a dispersão sem serem isolados pela polícia.

Não são hostilizados. Por dentro do cordão humano, Lula é conduzido pelo 110 metros que separam o palanque na praça do hotel Bertaso. Os apoiadores, extasiados e incrédulos, comemoram. O Brasil sombrio e bárbaro apresentava seu oposto. O dia que começou tenso, ficou violento e poderia terminar em tragédia acabou em paz.

Por Rodrigo Ratier, jornalista, repórter especial de Nova Escola e professor de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero. Artigo publicado no HuffPostBrasil.com