Vivemos tempos sombrios, no Brasil e no mundo, com cenas de horrores que julgávamos que não tornaríamos a ver. Milhares de pessoas desterradas dos seus países por ódio racial, religioso, nacional, buscando seu canto, seu sossego, submergindo em barcos clandestinos, cascas de ilusão em oceanos de descaso. Centenas de meninas sequestradas, violadas por fundamentalistas no continente africano, cujo desequilíbrio demográfico, ecológico e institucional tem origem em séculos de escravismo colonial, e cuja herança ainda alimenta o racismo no Brasil – no futebol, nas redes sociais, nas prisões, nas desigualdades. Cidades e estátuas milenares, que resistiram a tantas guerras, são destruídas pela insanidade dos que querem impor seitas e dogmas pelo medo, com mutilações.
No Brasil, assistimos a terríveis exemplos de intolerância: menina de 11 anos apedrejada porque vestia o branco de sua religião afro, considerada demoníaca pelos ensandecidos agressores. Jovens homossexuais assassinados devido à natureza do seu amor. Uma repórter da TV injuriada na rede social por ser negra e ter sucesso. A onda conservadora e intolerante avança no Congresso, através da união de interesses econômicos, dogmas, populismos e preconceitos, com projetos de lei que pretendem impor um modelo único de família, desqualificando milhares de cidadãos, acentuando os estigmas. Outros PLs banalizam o uso de armas, que ceifam vidas, vendem ilusões e enriquecem seus mercadores. Há projetos que dificultam a criação de reservas indígenas e unidades de conservação, quando queremos nos afirmar como defensores do clima e do planeta, e superarmos o etnocídio que dizimou milhões de índios, por ganância. Há PLs que endurecem a prisão de usuários de drogas, ignorando o fracasso da guerra às drogas – que aumentou o poder do tráfico e a corrupção policial, e desprezando alternativas mais humanas e eficazes.
Apesar da maré obscurantista, me animo com luzes e teses que florescem. A Alerj recém aprovou lei anti-homofobia, enfrentando forte oposição religiosa. Depus no Supremo Tribunal Federal (STF) em audiência pública, coordenada pelo ministro Luiz Roberto Barroso, sobre ação do Ministério Público Federal que contesta o ensino confessional e doutrinário em escola pública; este, ao contrário do ensino interreligioso não confessional, provoca intolerância nas escolas, segundo pesquisadores da UFRJ, UFF, Uerj e Iser. Cerca de 90% dos líderes religiosos e dos juristas que depuseram apoiaram a posição de respeito ao estado laico e à liberdade religiosa, defendida pelo MPF. Participei do Seminário Internacional sobre Maconha e Política de Drogas promovido pela Fiocruz e pela Escola da Magistratura do TJ-RJ, de elevado nível, com renomados juizes, médicos, dirigentes da segurança pública, parlamentares, responsáveis pela política de drogas no Uruguai, psicólogos.
A fundamentação interdisciplinar para uma política que supere a guerra às drogas e o encarceramento de usuários está consistente e refuta os argumentos do proibicionismo, eivados de preconceitos. Tenho a percepção de que o STF, ao julgar o recurso especial da Defensoria de São Paulo, fará história, pois descriminalizará os usuários, como fez quando legalizou a união civil homoafetiva. Há luzes e esperanças – apesar das forças econômicas e obscurantistas da intolerância.
(Artigo inicialmente publicado no jornal “O Globo”, no dia 22 de julho de 2015)
Carlos Minc é deputado estadual (PT-RJ)