Por Celso Amorim, em resposta ao artigo de Fábio Zanini, publicado na Folha de S.Paulo
Foi com grande surpresa e uma ponta de indignação que li o artigo de Fábio Zanini comparando a diplomacia do desgoverno Bolsonaro com a do governo Lula, ao qual tive a honra de servir como chanceler.
Pode-se gostar ou não do que foi feito na política externa naqueles anos, mas a diplomacia de Lula colocou o Brasil no centro do tabuleiro da política internacional, com ações como a integração sul-americana, a aproximação com a Africa e países árabes, a criação de foros como IBAS e BRICS, além de participação respeitada em foros como a OMC, a COP (mudanças climáticas), G-20, etc.
Até mesmo o acordo que, juntamente com a Turquia, logramos obter do Irã, seguindo o pedido que nos fora feito pelo presidente dos EUA, apesar de recusado na época, foi reconhecido por políticos e analistas como um passo importante para o que viria a ser o JCPOA, assinado por Obama e desprezado por Trump.
Nossa atuação na região sempre foi ditada por uma visão não arrogante e de busca de interesses comuns.
No caso do gás da Bolívia, o reconhecimento do direito soberano daquele país sobre seus recursos naturais se fez sem prejuízo do interesse brasileiro. Em um mundo em que se discutia a crise energética, que levou a situações de penúria, inclusive na Europa, em função de divergências entre a Rússia e Ucrânia, o Brasil conseguiu manter intacto o fornecimento do combustível boliviano, mediante um reajuste modesto da base de cálculo para o preço.
Tivemos comportamento semelhante em relação ao Paraguai, outro parceiro estratégico, tanto em relação ao governo de Duarte Frutos (centro-direita) quanto ao de Lugo (esquerda), reconhecendo a necessidade de remunerar adequadamente a energia cedida pelo nosso sócio, o que foi feito por meio de acordo submetido ao Congresso brasileiro e por ele aprovado. (Não tenho condições de comentar o que acaba de ser negociado pelo atual governo com Assunção, até porque a questão da compra da energia excedente pelo Paraguai nunca foi o foco de nossas negociações).
Quanto a “ditadores de estimação”, o governo de que fiz parte, sim, tinha boas relações com o “bolivariano” Chávez, da Venezuela, mas também com o direitista Uribe, da Colômbia, o que nos permitiu trabalhar pela Paz e pelo desenvolvimento da América do Sul, essenciais para nossa própria projeção no mundo. Nossa ação em relação a esses países, em particular o grupo de amigos da Venezuela, que possibilitou a realização do referendo revocatório, em 2004, foi objeto de repetidas manifestações de apreço por sucessivos governos norte-americanos.
Finalmente, um comentário se faz necessário em relação aos “pontos de semelhança”. A única estratégia do governo Bolsonaro em política internacional é a submissão total aos Estados Unidos.
Até mesmo o celebrado acordo Mercosul União Europeia, independentemente de seus méritos e deméritos, será jogado pelo esgoto, ao menor aceno de contrariedade de Trump, Aliás, isso já começou a ocorrer com a desfeita acintosa imposta ao Ministro das Relações Exteriores da França.
O apoio declarado aos governos de direita na nossa região, além de refletir as inclinações do chefe de governo, se insere também nesse quadro de subalternidade, assim como a atitude intervencionista em relação a Venezuela, promovida pelo pitoresco chanceler, que nos deixou à beira de uma guerra, só evitada pelo bom senso de alguns chefes militares. A tentativa de impedir o fornecimento de combustível a navios iranianos que transportariam milho brasileiro tinha o mesmo sentido de alinhamento incondicional com Washington, como o próprio presidente tratou de deixar claro.
Lula, ao contrário, buscou inserir o Brasil de forma independente no cenário internacional, por meio de iniciativas concretas, recusando acordos que limitariam nossa possibilidade de desenvolvimento soberano (como a ALCA), contribuindo para um mundo pacífico e multipolar, menos sujeito a hegemonias e, tanto quanto possível, livre do flagelo da fome.
Este papel foi reconhecido pelos mais importantes líderes do mundo na época, de George W. Bush e Barack Obama a Vladimir Putin, de Hu Jin Tao a Jacques Chirac, passando por Gordon Brown e Mamohan Singh. Todos estes — e muitos outros — fizeram de Brasília, se não um centro de peregrinação, uma parada obrigatória para a discussão de temas de interesse regional e global, tanto na política como na economia, no meio ambiento e no desenvolvimento social.
A comparação com a antidiplomacia praticada pelos atuais governantes é, a meu ver, totalmente infundada e parece revelar não só ignorância dos fatos, mas uma visão altamente preconceituosa da realidade.
Celso Amorim foi ministro das Relações Exteriores (2003-2010) e da Defesa (2011-2015)