Não há santos e gênios, afirmação do saudoso professor Alfredo Augusto Becker que parece se subsumir perfeitamente na atual realidade da Operação Lava Jato.
Esclarece-se, inicialmente, não se tratar de uma ode à corrupção. Argumento utilizado correntemente aos opositores da Operação Lava Jato.
Joga-se luz a um debate sobre a confusão injusta criada pela operação Lava Jato. Esse carnaval jurídico longe de solucionar a falta de santidade e genialidade das sociedades humanas, acirra mais a disputa entre uma sociedade abstrata; criada por um direito estéril; e uma sociedade real.
A sociedade abstrata presume relações honestas – palavra utilizada a exaustão pelos defensores da operação Lava Jato – enquanto a sociedade real é complexa e defeituosa. Os participantes deste carnaval jurídico possuem um recurso retórico magnífico, convencem que o mal, o ruim, está sempre no outro.
Destaca-se do processo que levou o Presidente Lula à cadeia nestes quase 100 dias de prisão (provisória, cautelar, precária, seja lá qual o nome os tribunais resolveram atribuir) o depoimento do Sr. Emilio Odebrecht.
Neste depoimento – outra falha grotesca do sistema jurídico, pois o delator não é réu, não é testemunha, não é assistente do juiz ou das partes, não é nada juridicamente reconhecido. O delator é delator e supostamente afirma que a política brasileira sempre agiu em segredos, ao que o Procurador, sem o menor respeito, afirma que as coisas devem receber o nome correto, e afirma, o Procurador, os senhores cometiam crimes.
Mas, voltando ao conteúdo do afirmado pelo Sr. Emílio Odebrecht, foram expostos fatos supostamente reais e rotineiros da política brasileira. O dono de um dos maiores grupos econômicos afirmou que a política se fez e se faz nas sombras, motivada por interesses econômicos das empresas e dos políticos.
Foi e é esse interesse, o econômico, que faz prevalecer o modelo capitalista. A qualidade do individuo é medida pelo quanto de dinheiro se acumulou.
No Brasil se esconde o interesse econômico. Torna-se imoral agir mediante o pagamento. Cria-se um mundo fictício, genial e santo, como se se negar motivações econômicas tornassem fatos diários da vida e da política em fatos inexistentes e é a já dita acima sociedade abstrata.
A qualquer sinal de descompasso entre esse mundo irreal e o fato real surge o antídoto, representado por indivíduos defensores da moral e do bons costumes, puros, ilibados, neutros, superiores a qualquer outro ser carnal, ou seja, os enviados por Deus para purificarem a sociedade doente, corrupta, enquanto os enviados são honestos.
Esse foi o motivo pelo qual Calvino e Lutero, mesmo com as suas diferenças entre o divino interior e o divino prescrito pela palavra de Deus e escrita pelos profetas na Bíblia, foram perseguidos pela Santa Igreja de Roma. A reforma do cristianismo proposta, acreditava que Deus pertence a todos, não se restringia aos membros do alto escalão da Igreja Católica Apostólica Romana e sim pertenciam a toda criatura. O erro dos Reformistas foi a crença de que Deus poderia ser democratizado.
Neste sentido, a operação Lava Jato desnudou o autoritarismo da burocracia brasileira. Burocracia que já havia sido denunciada pelo Professor Tércio Sampaio Ferraz ao afirmar em sua apresentação concorrendo como Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo[1]:
“(…) Bom, esse é o risco que esta imanente à noção de soberania – e esse talvez um dos maiores risco da sociedade moderna. Agora, quando nós substituímos o Rex pela nação, essa possibilidade, ao meu ver, cresce. Digamos assim, que o despotismo de um homem é mais perigoso que o despotismo da nação. A história nos mostrara muitas vezes isso, nós resolvemos um problema mas às vezes criamos outro pior. Soberania jogada na nação cria a possibilidade de domínio da burocracia, com todos os riscos imanentes a ela. Aliás, esse é o problema que nós enfrentamos no mundo moderno. Hoje essa soberania ligada nessa entidade abstrata nos absorve e nós não temos contra quem lutar. É mais fácil lutar contra um homem do que lutar contra fios invisíveis que nos seguram aqui e ali pelo pagamento de uma taxa e coisa desse tipo. (…)”
A operação Lava Jato é exatamente essa burocracia autoritária agindo, apesar de muitas vezes se personalizar na figura do juiz que preside o processo. No entanto, é inequívoco que poderíamos atribuir essa figura ao Procurador evangélico, a Ministra Carmem Lucia do Supremo Tribunal Federal, ao Ministro Fachin do mesmo Supremo Tribunal Federal, ao ex – procurador Geral da República, Sr. Janot, aos movimentos que promoveram as manifestações favoráveis ao impedimento da Presidenta Dilma, aos veículos de jornalismo dominados por 05 (cinco) famílias, ou a qualquer outra figura desnudada pela operação Lava Jato.
A operação Lava Jato determinou o seu alvo e o seu alvo seria o responsável por todos os erros da sociedade.
Divergindo de colegas da mais alta capacidade intelectual, não existe a menor possibilidade de coibir o autoritarismo do juiz, pois o autoritarismo pertence à burocracia. A retirada de qualquer um dos honestos e ilibados funcionários públicos não alteraria em nada o curso da história. Isto é, não é suficiente que se expurgue do processo o juiz presidente do processo que levou o presidente Lula ao cárcere, pois, como se tem visto, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, assim como o magistrado que presidiu o processo, agiu com o mesmo autoritarismo, assim como o Ministro do Superior Tribunal de Justiça e o Relator do processo no Supremo Tribunal Federal.
Poderíamos alterar a figura pensando nas sucessões do Ministério Público. Excluindo-se o Procurador evangélico, chegamos ao ex – Procurador Geral, Sr. Janot e, atualmente, com a Sra. Raquel Dodge, todos fazem parte desse mesmo corpo burocrático autoritário que podem existir ou serem substituídos, mantendo-se o discurso da honestidade.
Ou então poderíamos pensar no jornalismo.
Com destaque utilizo o nome de um jornalista que não tenho nenhuma afinidade ideológica, o Sr. Reinaldo Azevedo. Inicialmente o jornalista possuía destaque em 03 ou 04 jornais de empresas diferentes. Após passar a denunciar o autoritarismo da burocracia foi sendo excluído dia a dia, até chegar a um único jornal com aparições que, se muito, são de 5 minutos, pois, em seu lugar, outro jornalista, com outro nome, com outra retórica, ocupou o espaço que era o ocupado pelo ferino Reinaldo Azevedo, já que o comprometimento é com o autoritarismo burocrático.
Dois autores clássicos utilizam desse autoritarismo como forma de obtenção de paz. Primeiramente, foi Maquiavel, em o Príncipe: a afirmação de que ao Rei é preferível ser temido a ser amado, bem como a máxima de que o Rei deve descumprir as suas obrigações caso o cumprimento desta obrigação venha a colocar em risco o seu poder.
O outro autor é Hobbes. Em sua obra Leviatã há marcas inegáveis do Príncipe, mas é em Elementos de Direito Natural e Político que se encontra todo o fundamento do déspota. A segurança da vida em sociedade é elevada ao máximo, para o autor, o único vetor realmente importante é a segurança, toda a dignidade do ser humano se encontra amparado se garantida a segurança.
A segurança pensada por Hobbes é aquela em que no estado de natureza o homem é capaz de qualquer coisa para manutenção de sua vida, pois somente com vida o homem poderá possuir os deleites do mundo. Assim, a única maneira de garantir a vida será por meio de uma segurança forte.
O homem não exercerá o seu direito natural de aniquilar o outro homem se encontrar um freio, um inibidor, portanto, o Estado seria este freio. Porém, o Estado será a dominação de poucos sobre muitos, seja em decorrência da força dos poucos ou da intelectualidade unida com a força.
Os proprietários do Estado exercerão a violência legitima outorgada pela coletividade de cidadãos e cidadãs, por meio do contrato social ou outro instrumento ou o voto ou o concurso público, para o bem da segurança. Então, os detentores deste Estado utilizarão, gozarão e fruirão do poder legitimo, podendo impor o temor ou descumprir as obrigações assumidas e garantidas em nome da segurança ou, como preferem os Hobbesianos contemporâneos, a honestidade.
Essa é a lógica que se desenvolveu o processo em face do Presidente Lula que culminou com a sua prisão. Inicialmente, os membros do Ministério Público Federal investigavam[2] o desvio de dinheiro público em contratos específicos da Petrobras.
Curiosamente, obtiveram a informação de que diretores da Petrobras recebiam dinheiro, pois, em investigação de trafico de drogas, os traficantes utilizavam doleiros para emissão de dinheiro para fora do país. Mas estes doleiros não trabalhavam exclusivamente para traficantes. Entre os seus clientes estavam dois diretores da Petrobras.
Com a “descoberta”, os diretores da Petrobras foram presos preventivamente, após a prisão, os réus passaram a delatar as empresas que pagaram propina. E, neste ponto, é importantíssimo destacar que os Diretores da Petrobras em momento algum afirmaram que superfaturaram contratos em troca de propina, pelo contrário, um dos delatores afirmou que, independentemente, de influência na contratação da empresa ou consórcio de empresas o pagamento de propina era efetuado pelas Construtoras.
Ou seja, havia nitidamente pela narração dos delatores diretores e gerentes da Petrobras o favorecimento sem a exigência, ou seja, não havia o crime de corrupção. Aliado a isso, estão os depoimentos dos donos das construtoras, que exatamente seguem o mesmo sentido, não havia uma exigência, havia um sistema de remuneração milenar, conforme dito, principalmente, pelo Sr. Emilio Odebrecht.
Porém, apesar de tudo isso, o Ministério Público Federal, contrariando as afirmações dos delatores e réus – diretores da Petrobras e donos das Construtoras – construiu a ardilosa narrativa no sentido de que os repasses milenares de dinheiro das construtoras para os diretores da Petrobras também eram o mesmo dinheiro que abastecia os cofres das campanhas eleitorais.
Não suficiente a ilação de que o repasse de dinheiro para Partidos políticos tinha origem em contratos públicos superfaturados, o Ministério Público Federal ainda passou a perseguir políticos, afirmando que os repasses de dinheiro das Construtoras para determinado político se vinculavam exclusivamente nas vantagens, não demonstradas em momento algum, em contratos administrativos celebrados com a Petrobras e superfaturados.
Assim, com ficções atrás de ficções, o Ministério Público construiu a sua realidade, que consistia em afirmar que o Presidente Lula havia recebido como vantagem indevida um imóvel triplex e a sua reforma da construtora OAS pelos contratos celebrados entre a Construtora e a Petrobras.
O curioso desta afirmação feita pelo Ministério Público é que a conta final não fecha, pois, segundo o Ministério Público e seu PPT a cada contrato 3% (três por cento) do contrato seria revertido aos diretores da Petrobras e cada um dos diretores repassava para o Partido Político correspondente, ou seja, PP e PMDB (atualmente MDB). Porém, deveria existir mais um percentual destinado exclusivamente ao Presidente Lula, o que não foi afirmado em nenhum momento na instrução processual.
O fato é notório, visto que, apesar da condenação em 9 anos e meio de prisão, na sentença, o juiz da 13ª Vara Federal, não menciona em nenhum momento que o dinheiro que “pagou” a compra do imóvel triplex ou realizou a reforma é oriundo de contratos com a Petrobras.
Diante disso, a brilhante defesa do Presidente Lula opôs recurso para esclarecer esse ponto da sentença, pois a denuncia dizia que o Presidente havia sido beneficiado pelo superfaturamento dos Contratos com a Petrobras.
E na decisão sobre o recurso fica evidente que não se trata de questões técnicas, mas apenas o autoritarismo burocrático desnudado. O juiz afirma que não há necessidade de comprovar o desvio dos contratos com a Petrobras, basta comprovar a vantagem indevida.
Ora, a justiça respondeu da seguinte maneira: você não recebeu propina conforme dito pelo Ministério Público, mas eu vou te prender porque assim eu quero, você é um vitorioso e se eu deixar você livre o Sr. poderá ser o próximo presidente da república e eu não quero que isso aconteça.
O que fica evidente é que não foi apenas o juiz que condenou o Presidente Lula, que age de maneira autoritária. O início desta Operação se vincula diretamente com os honestos e geniais burocratas. Não é o juiz que é autoritário, o nosso sistema se tornou autoritário. Sempre surge um intelectual para fundamentar o autoritarismo, foi assim na Alemanha de Hitler, no estado soviético de Stalin, no golpe militar de 1964, está sendo agora com o Sr. Sergio Moro que fundamenta o autoritarismo com peso em razão da função de juiz, foi com o Desembargador Gebran no Recurso de Apelação, foi assim na fala da Ministra Carmen Lucia.
Sempre há o fundamento hobbesiano de garantir a segurança, a manipulação do sistema para manutenção do poder nas mãos dos proprietários do estado. Ocorre que, contemporaneamente, não há como previsto pelo professor Tercio Sampaio Ferraz, a figura do Rei para que o povo, cansado dos mandos e desmandos, derrube o Rei e consiga obter a liberdade desejada.
Ao contrário a burocracia que se apropriou do Poder possui um discurso muito mais atrativo do que o déspota, conquista mentes e corações com mais efetividade, denuncia que a “culpa” de todo o sofrimento não está mais no Estado e, sim, em pessoas. Desta forma, que a burocracia conseguiu derrubar o maior ícone da esquerda latino americana. Não importam os argumentos técnicos, os recursos bem elaborados, até eventuais vitorias em uma batalha, a guerra entre Estado, com a sua burocracia autoritária, venceu e vencerá a guerra.
A supressão de dignidade mínima ao ser humano, pleiteada pela esquerda brasileira está sendo aniquilada, extirpada, pelo discurso autoritário da burocracia, que ao seu turno com um discurso retórico eficaz desmonta todos os avanços sociais.
Pouco importa a considerável melhora na qualidade de vida dos brasileiros e brasileiras, o que importa é que o discurso de que a política brasileira possui segredos não suportados pela moral católica é muito mais aderente as mentes e corações. O discurso de que políticos utilizam da liberdade de maneira diferente do que esperada por burocratas, inclusive a possessão pela verdade do burocrata o impede de admitir que a política esta acima na hierarquia social.
Talvez, Hanna Arendt estivesse com a razão e as revoluções democráticas necessitam cindir os pleitos de liberdade política e os pleitos de melhora nas condições sociais. Pois, a revolução democrática em empossar um metalúrgico como o Chefe da Nação foi um golpe aos burocratas, mas, sem duvidas alguma, o ódio observado por um metalúrgico fazer mudanças absurdas nas relações sociais tornou insustentável a continuação da revolução democrática vivida no país.
No entanto, neste especifico ponto, prefiro Russel, em que somente com o impulso criativo, abnegado de qualquer violência poderemos vencer essa burocracia autoritária, autofágica, cerceadora do pluralismo. Somente com mobilizações sociais pacificas, dando o outro lado da face, assim como vem fazendo o Presidente Lula em seu cárcere, poderemos desvelar esse autoritarismo burocrático exposto pelas ações do juiz, dos desembargadores, dos Ministros Superiores e Supremos. Somente com resiliência poderemos dia a dia retomar corações e mentes da sociedade entorpecida pela retórica autoritária e burocrática.
São ou serão 100 dias do cárcere da maior autoridade da esquerda latino americana que ficaram marcados pela incansável manifestação de colegas juristas e intelectuais demonstrando o autoritarismo burocrático, expondo que a guerra real é da sociedade civil em face do Estado, esse ente soberano e nebuloso que busca desvelar os segredos de uns, mas disposto a esconder os seus próprios segredos, sob pena, de fazendo a exposição dos seus segredos, demonstrar todo o seu autoritarismo mesquinho, patrimonialista e que visa a exclusão dos cidadãos e cidadãs.
Como disse o Ministro Marco Aurélio de Mello: “Tempos sombrios estamos vivendo”.
[1] Adeodato, João Maurício; Bittar, Eduardo C. B. (org.) – Filosofia e Teoria Geral do Direito: estudos em homenagem a Tercio Sampaio Ferraz Junior por seu septuagésimo aniversário – São Paulo: Quartier Latin, 2011, página 33.
[2] Excrescência do nosso sistema jurídico, em 1988, o Ministério Público seria o Poder Moderador, sem este nome, mas, basicamente, seria o xerife do sistema, luta e vitoria necessária para um país que vinha de 30 (trinta) anos de ditadura militar e havia efetivamente pessoas proprietárias do Sistema, portanto, justíssima a atribuição de fiscal do Ministério Público, buscando coibir que a personificação de pessoas no Estado não seria o caminho correto para uma República Democrática de Direito. Não satisfeitos com a possibilidade de ser xerife do sistema, o ministério público Federal ainda era o titular da Ação Penal, ou seja, participaria ainda do contencioso penal como parte. Mas isso ainda não era suficiente, o Ministério Público desejava participar da atividade policial de investigação e, ainda no governo Lula, pleitearam e conseguiram ampliar ainda mais as funções, além de xerife de sistema e parte na ação penal passou a ser investigador, ou seja, o caminho para garantir a autoridade sobre todo o processo e, assim, se tornaram a maquina burocrática mais complexa do sistema jurídico, pois se antes havia uma divisão tênue entre o Estado e a Instituição, com a participação em investigações policiais a cisão acabou de uma vez.
Por Cesar Rezende, advogado criminalista, membro do Instituto Brasileiro do Direito de Defesa e da Comissão de Direitos Humanos do Instituto dos Advogados de São Paulo