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Cheia do Amazonas: Quando o ritmo das águas e da desigualdade social se encontram

Rio Negro iguala a marca histórica da maior enchente registrada em Manaus. 58 dos 62 municípios amazonenses já foram afetados.

Reuters

Ana Clara, Elas Por Elas

Nesta semana, o nível do Rio Negro alcançou a cota da maior enchente já registrada na cidade, que ocorreu em 2012. Em todo estado, 58 dos 62 municípios registraram prejuízos por causa da cheia atingindo mais de 455 mil pessoas.

Na semana passada, os municípios de Manacapuru (a 86km de Manaus) e Careiro da Várzea (a 25 quilômetros da capital amazonense) decretaram estado de emergência. O reconhecimento concede o direito de solicitar recursos para “restabelecimento” de serviços essenciais, obras de infraestrutura e de equipamentos danificados pela enchente.

Além de desabrigar famílias e alterar a rotina da população, os prejuízos da subida das águas na agricultura atingem uma das principais fontes de renda das famílias no interior do Estado e na zona rural de Manaus. No centro histórico da capital, diversas ruas estão interditadas e os produtores agrícolas acumulam prejuízos, por conta da falta de infraestrutura na “Manaus Moderna” a maior feira de agricultura do estado. Até o dia 8 de abril deste ano, o total de perdas agrícolas causadas pela cheia dos rios no Amazonas era estimada em mais de R$ 70 milhões.

Anne Moura, secretária nacional de mulheres do PT

“A cheia do rio não é novidade para quem é da região. No entanto, o crescimento urbano desordenado e a falta de investimento em infra-estrutura e políticas públicas faz com que o período de cheia acentue ainda mais a desigualdade social, prejudicando principalmente a população mais pobre. Os igarapés acumulam lixos, as pessoas ficam isoladas e expostas a maiores riscos de saúde pública. Com a pandemia, a situação fica ainda mais perigosa”, explica a manauara Anne Moura, secretária nacional de mulheres do PT.

 

O ritmo das águas

A dinâmica das vazantes na região faz parte da configuração geográfica local. A Amazônia brasileira é composta por dois espaços territoriais distintos: áreas de terra firme e várzea. É nessa última que ocorre de forma mais intensa o fênomeno da enchente e vazante dos rios, que interfere nas condições de vida das populações rurais e urbanas.

No ecossistema de várzea existem quatro “estações climáticas” devido à falta de sincronização entre o regime fluvial e o regime pluvial (chuvas):

A enchente (subida das águas)

A cheia (nível máximo das águas)

A vazante (descida das águas)

A seca (nível mais baixo das águas).

 Essas estações contornam a dinâmica das águas, que se expressa por uma fase terrestre e outra aquática. O modo de vida da região se adapta a esse ritmo, sendo que a fase de enchente ocorre nos meses de fevereiro a junho. A comunidade ribeirinha é intrinsecamente ligada à água, pois vive às margens dos rios e mantêm uma íntima relação, constituindo-se como direcionamento de suas vidas e de sua interação com o ambiente.

 No livro “O rio comanda a vida”, de Leandro Tocantins, essa conexão é descrita como “quase mística”, vínculo que transforma os humanos e o rio em seres indissociáveis.

“Amados, odiados, louvados, amaldiçoados, os rios são a fonte perene do progresso, pois sem ele o vale se estiolaria no vazio inexpressivo dos desertos. Esses oásis fabulosos tornaram possível a conquista da terra e asseguraram a presença humana, embelezaram a paisagem, fazem girar a civilização — comandam a vida no anfiteatro amazônico.”

 

O ritmo da desigualdade

 A íntima relação das comunidades ribeirinhas com o ritmo das águas e suas adaptações vêm sendo constantemente ameaçadas pelo crescimento urbano desenfreado, a desigualdade social e o desmatamento na Amazônia.

 A instabilidade das mudanças climáticas associada à precariedade de habitação e condições sanitárias que as populações vivem transformam a sazonalidade natural dos rios em um verdadeiro caos urbano e de saúde pública.

Na cheia deste ano, todos os dias, as águas invadem áreas urbanizadas pela rede de esgoto. Ruas e avenidas são  interditadas e os igarapés transbordam de lixo. A crise sanitária se agrava com o material jogado na cidade, pelo rio que sobe. Já foram retiradas mais de 600 toneladas de lixo do Rio Negro. E quase não há forma de fugir.

 “A necessidade de abandonar as moradias alagadas em zonas urbanas e regiões rurais afetadas pode contribuir para um aumento de infecção por SARS-CoV-2 e da variante P.1”, diz Schöngart, doutor em ciências florestais e vice-coordenador do Grupo de Pesquisa em Ecologia, Monitoramento e Uso Sustentável de Áreas Úmidas, para o portal Amazonas Atual.

Palco da falta de oxigênio que embasou a instauração de uma CPI no Senado Federal, o estado do Amazonas corre o risco de lidar com a terceira onda da Covid-19 em meio a uma já grave situação de calamidade pública.

“Uma possível terceira onda da pandemia pode coincidir com a ocorrência da cheia e exige um intenso monitoramento e preparo pelas políticas públicas competentes para mitigar os impactos que podem resultar da sinergia da cheia e do intenso aumento de casos da Covid-19”, alerta.

 

Mulheres e crianças

Na região amazônica, a ocorrência de chuvas extremas está relacionada ao baixo peso de recém-nascidos, segundo estudo da Fiocruz e da Universidade Lancaster. O levantamento ressaltou os impactos de longo prazo que as temperaturas extremas resultantes das mudanças climáticas podem provocar.

Foram comparados 300 mil nascimentos ao longo de 11 anos com dados climáticos locais e a conclusão foi de que os bebês nascidos após chuvas extremas tinham mais probabilidade de nascer abaixo do peso ideal, o que é uma indicação de que, quando adultos, eles podem obter níveis mais baixos de saúde, educação e renda.

As enchentes severas no rio Amazonas são cinco vezes mais comuns do que há algumas décadas, de acordo com um artigo publicado em 2018 na revista científica Science Advances.

“Toda a comunidade ribeirinha é afetada pela enchente. No entanto, mulheres e crianças são as mais prejudicadas. O aumento da dificuldade em acessar serviços básicos de saúde, somada à crise sanitária, impacta a forma de nascer nos amazonenses e, consequentemente, em todo nosso futuro. Ter direito a serviços públicos de qualidade e um desenvolvimento sustentável da região que respeite os tempos de nossos povos e da natureza é fundamental para mudar esse cenário”, explanou Anne.

Com informações de G1 e Amazônia Real.