O presidente Jair Bolsonaro não mede esforços em contribuir pessoalmente com a própria tese de que 70% dos brasileiros irão se contaminar com o coronavírus de qualquer jeito, “não adianta querer correr disso”. No Palácio da Alvora, anunciou, em tom de galhofa, a realização de um churrasco para 30 pessoas neste sábado (9). “Estou cometendo um crime. Vou fazer um churrasco no sábado aqui em casa. Vamos bater um papo, quem sabe uma peladinha, alguns ministros, alguns servidores mais humildes que estão do meu lado”, afirmou o presidente. A reunião contraria as recomendações de autoridades como a Organização Mundial da Saúde (OMS), das Nações Unidas.
O Brasil tem hoje a maior taxa de contágio do mundo. Em média, cada infectado transmite o vírus para 2,8 pessoas, segundo um estudo de 48 países conduzido pelo Imperial College de Londres. Some-se a esse dado alarmante a falta de testes em massa e as subnotificações, não é difícil prever o estrago caso um dos convidados do churrasco carregue o vírus sem saber. Enquanto Bolsonaro confraterniza com sua equipe e amigos, o Brasil pode chegar a 10 mil mortes em decorrência do coronavírus neste final de semana. Com a trágica marca de mais de 141 mil casos e 9,6 mil óbitos, somos o terceiro país a registrar mais mortes por dia. Milhares de vidas que poderiam ter sido salvas se o governo federal tivesse se preparado e apresentado um plano de ação emergencial.
“Eu não queria ficar falando mal toda hora do governo”, afirma o ex-presidente Luiz Inacio Lula da Silva. “Mas é insuportável ver a insensibilidade com a vida das pessoas”, lamenta o petista. “Nós não temos um presidente. O Bolsonaro faz tão mal para o Brasil quanto o coronavírus”.
Dando de ombros, o presidente mantém-se firme à cruzada contra a ciência, “argumentando” que um relaxamento da quarentena salvará a economia e, por consequência, os empregos da população. Na prática, no entanto, tudo o que o atual ocupante do Palácio do Planalto faz é brincar com a vida dos brasileiros. Toda vez que Bolsonaro discursa em uma manifestação, em cada momento que aparece em um lugar público, move-se mais uma peça de um jogo cruelmente mortal. Na tenebrosa versão de uma espécie de roleta russa em massa, poucos privilegiados têm a chance de não jogar.
Imunidade de rebanho
Em transmissão feita domingo (3) pelo YouTube, o doutor em microbiologia Átila Iamarino, desmonta a tese da contaminação em massa como arma para vencer a pandemia. Pela teoria, após 70% da população contrair o Covid-19, a doença entraria em declínio, uma vez que seria formada a chamada ‘imunidade de rebanho’. Ou seja, novos doentes teriam contato apenas com pessoas imunes à ação do vírus. Pelas evidências, a ciência indica que esse é um caminho perigoso.
“Não temos nenhuma comprovação de que isso funciona para o coronavírus”, sustenta Iamarino. “Temos evidências de que as pessoas que pegam a doença não se infectam de novo mas não sabemos por quanto tempo elas ficam protegidas”, argumenta ele. O especialista cita o exemplo de Nova York, que aplicou testes em massa em uma das regiões mais atingidas pela pandemia, e chegou a uma taxa de letalidade de 0,85% do Covid-19.
Se a tese da imunidade de rebanho for aplicada no Brasil, 70% ou 149 milhões de pessoas serão infectados, calcula o cientista. Num cenário “otimista”, com uma taxa de letalidade de infecção baixa, de 0,7%, ele traça um cenário desolador: “Os 0,7% desses 149 milhões de pessoas irão morrer por Covid-19, o que, por baixo, dá 1 milhão de pessoas”. Iamarino alerta ainda que não há evidências ou provas de que o teto da propagação do vírus estancaria de fato em 70%.
Os pesquisadores de Nova York chegaram a números mais fidedignos graças à confiabilidade dos testes em massa. A cidade tem hoje uma taxa de letalidade de 0,6% no cenário mais otimista, levando-se em conta apenas mortes confirmadas por Covid-19. Até 30 de abril, portanto, 2,1 milhões de casos resultaram em 12,5 mil mortes. “Isso é, no mínimo, 15 vezes pior do que a gripe, na estimativa mais baixa que eles têm para a letalidade do vírus”, compara Iamarino. O cenário mais realista, que leva em consideração os 5,2 mil mortos por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), provavelmente vítimas da Covid-19, aponta para uma taxa de mortalidade em torno de 0,85%.
O cientista ressalta que a taxa de letalidade de um milhão de pessoas poderia ocorrer mesmo no caso de o sistema de saúde não entrar em colapso. Se o Brasil atingir o ponto de colapso geral e as pessoas deixarem de ter atendimento, como já vem ocorrendo, essa mortalidade aumentará consideravalmente, aponta Iamarino. “Quem supõe que essa situação é normal e podemos seguir tocando a vida porque 70% dos brasileiros vão pegar [o coronavírus] e está tudo bem, está achando normal que a gente perca esse tanto de vidas. É isso que temos para ver pela frente”, adverte.
Controle do pico da doença
A experiência mostra que controlar o pico da doença é fundamental para evitar mais mortes até o surgimento de uma vacina eficaz contra o coronavírus. Iamarino faz uma comparação entre Brasil e Austrália, que em março apresentavam uma curva semelhante de evolução da pandemia. A Austrália adotou quarentena cedo, testou a população e impôs regras de distanciamento social que foram levadas à risca. “Agora, eles podem discutir reabrir a economia”, afirma, lembrando, no entanto, que uma reabertura desordenada pode provocar um novo pico, caso de Singapura.
No caso do Brasil, a atual tendência de alta dos casos só reforça a necessidade de quarentena, não a de relaxamento, como martela Bolsonaro. O pesquisador afirma que estimativas feitas nos Estados Unidos mostram que, se a população tivesse aderido à quarentena duas semanas antes do início do bloqueio, o governo teria evitado 54 mil mortes, cerca de 90% do total de casos registrados na semana passada. “É disso que estamos abrindo mão, deixando os casos crescerem de novo”.
Daqui para a frente, a evolução da pandemia vai depender muito das medidas que serão tomadas pelas autoridades, como uma restrição ainda mais severa das atividades e o bloqueio total da circulação de pessoas, o chamado lockdown, já em curso no Maranhão, no Pará e outras capitais. A julgar pela promoção de convescotes palacianos ao invés da apresentação de um programa com medidas de urgência, o Brasil logo colherá os resultados por reivindicar, com tamanho esmero, o posto número um de novo epicentro do Covid-19 no mundo.
Da Redação