No segundo turno das eleições, o voto feminino deverá ser pautado por motivos que vão muito além da política partidária, segundo a jornalista especializada em direitos humanos e minorias, Marina Pereira Pires de Oliveira. Para ela, o voto pode ser guiado também por razões que são simbólicas, culturais e psicológicas. “Afinal de contas, o presidente ou a presidenta são figuras públicas que também têm uma influência na maneira como as pessoas pensam e agem no país”, diz.
Em entrevista à Agência PT de Notícias, ela critica posturas conservadoras e sexistas do candidato à Presidência da República, Aécio Neves (PSDB) e afirma que uma possível eleição do tucano pode causar retrocessos para conquistas femininas no Brasil.
Na última terça-feira (21), Marina Pereira publicou o artigo “O macho alfa e a presidenta”, no portal Brasil Debate. “Desnudar os comportamentos sexistas do candidato Aécio Neves e seu poder de incentivar os machistas de plantão a saírem do armário, com comentários de baixo calão nas redes sociais, nos bares e nas ruas do Brasil, é tomar consciência do simbolismo em jogo na atual campanha presidencial”, defende no texto. Desde 2008, a jornalista é assessora especial da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI).
Confira a íntegra da entrevista:
Agência PT: Em seu artigo, a senhora afirma que as eleitoras começaram a acordar para o significado de uma possível eleição de Aécio Neves à Presidência da República. O que a eleição de Aécio poderia representar para as reivindicações femininas no Brasil?
Marina Pereira: Na questão que envolve as mulheres é importante observar o comportamento dele, como homem, para que a gente possa fazer uma reflexão e ver as implicações disso para a sociedade como um todo. Porque, afinal de contas, o presidente ou a presidenta são figuras públicas que, para além do trabalho que elas exercem no cotidiano delas, também têm uma influência na maneira como as pessoas pensam e agem no país. É importante olhar um pouco para isso e verificar até que ponto os impactos disso estão sendo levados em conta na hora de votar. Porque a gente vota não só por questões políticas, mas por razões que vão além da política, que são simbólicas, culturais e até psicológicas.
AGPT: Mulheres feministas criticaram Aécio Neves por considerarem sua postura machista e agressiva contra a presidenta Dilma Rousseff e Luciana Genro, durante os debates transmitidos pela TV. A senhora concorda com essa crítica?
Marina Pereira: Concordo. No momento em que ele partiu para cima das candidatas mulheres, nos debates, com um tom que ele não usou em relação aos candidatos homens, isso mostra uma atitude diferenciada. Por que se eleva o tom da voz e se usa palavras como “mentirosa” e “leviana” contra uma mulher e essas mesmas palavras não são usadas contra um homem, quando você está no mesmo embate e no mesmo debate?
AGPT: Esse tipo de atitude incentiva o machismo na sociedade?
Marina Pereira: É. Eu acho que o que a gente precisa ver é que a sociedade brasileira ainda é uma sociedade em transição. O machismo, infelizmente, ainda domina muito a nossa cultura, em vários aspectos. Quando você está num processo de redução desse machismo, dessa situação em que as mulheres estão em desigualdade, ou sendo tratadas de forma diferente, você precisa, continuamente, coibir comportamentos machistas. Na medida em que você volta no tempo e começa a repetir, a reforçar comportamentos que são conservadores e que prejudicam as mulheres nesse aspecto, você está trabalhando contra o processo histórico de liberação da mulher.
AGPT: Quais são os principais desafios enfrentados pela presidenta Dilma Rousseff, enquanto a primeira mulher eleita Presidente da República?
Marina Pereira: Acho que são muitos. Em primeiro lugar, ela tem uma trajetória de vida muito forte, muito marcante. Ela é uma pessoa muito séria, que chegou ao poder depois de ter sido uma militante de esquerda, combativa, uma pessoa por vezes dura nas suas posturas, porque ela está diante de um enfrentamento muito difícil. A figura da presidenta Dilma, como uma mulher forte, muitas vezes causa reações que as pessoas não percebem. Mas você pergunta para uma pessoa se ela tem preconceito com Dilma, por ela ser mulher, e a pessoa vai dizer “não, eu não tenho preconceito”. O verdadeiro preconceito está no inconsciente da pessoa. As pessoas sentem, às vezes, uma repulsa, um ódio por uma pessoa, mas dizem que isso não tem nada a ver com o fato de ela ser uma mulher. Mas, na realidade, se você for parar para pensar profundamente, você não tem uma explicação racional para isso. Existe uma reação muito forte à figura de uma mulher que é extremamente forte, que é a presidenta Dilma e que é a primeira mulher Presidente da República.
O próprio presidente Lula disse, quando escolheu a Dilma para ser a candidata que, depois que uma pessoa pobre chegou à Presidência da República, o segundo ato simbólico mais importante na nossa sociedade seria o de colocar uma mulher na Presidência e romper com mais esse padrão cultural brasileiro que oprime uma parte da sua população.
AGPT: Esse ódio irracional que algumas pessoas sentem pode estar relacionado ao fato de que a presidenta não segue padrões e estereótipos estabelecidos para as mulheres na sociedade?
Marina Pereira: Com certeza. É bem provável que esteja. No momento em que ela trabalhou sem se preocupar com a questão do estereótipo da mulher meiga, da mulher doce, daquela mulher objeto de desejo sexual, daquela que está sempre preocupada com a questão do corpo, ela contraria esses estereótipos e também provoca essa reação. Às vezes, a própria pessoa que tem essa reação não tem consciência desse preconceito.
AGPT: Como a senhora analisa as conquistas para as mulheres ao longo dos anos, no Brasil?
Marina Pereira: Eu acho que as mulheres têm tido conquistas muito grandes ao longo deste século, de maneira geral, no mundo. Mas, no caso do Brasil, especificamente, uma conquista muito importante que pouco se fala é, por exemplo, em relação ao Bolsa Família. No cartão do Bolsa Família, a beneficiária é sempre a mulher. A gente sabe que, no Brasil, infelizmente, a paternidade irresponsável é uma coisa muito comum, então as mulheres acabam ficando com os filhos e responsáveis por tudo. Entregar o benefício na mão da mulher também é empoderá-la na sua relação com os seus companheiros e dar para ela a liberdade para utilizar aquele dinheiro da melhor maneira para a família.
Na área da reforma agrária, passamos a ter a titulação das terras em nome da mulher, que era uma coisa muito rara de acontecer e é uma afirmação importante. A Lei Maria da Penha mudou o patamar do enfrentamento da violência contra a mulher, na medida em que o Estado precisa mais ser chamado a intervir. Antes da Lei Maria da Penha, bater em mulher era um problema privado, de cada um e, a partir da lei, o Estado passou a ter a obrigação de zelar pelo bem-estar que não é só físico, mas é psicológico e social da mulher. Isso é uma conquista muito importante. E, claro, não é a lei que muda isso, mas ela é um passo, pois a partir dela houve todo um trabalho de implementação de políticas e de convencimento das pessoas de que isso é uma coisa boa. Às vezes, as pessoas reagem mal a coisas que são avanços, porque elas estão rompendo com paradigmas sociais.
Eu diria também que a questão da melhoria do salário do serviço doméstico e dos direitos dos trabalhadores domésticos beneficiam, na sua maior parte, as mulheres – que são o maior contingente de trabalhadores domésticos. Deu direitos que antes elas não tinham e permitiu que elas possam ter uma melhoria na sua renda. São conquistas muito importantes.
AGPT: Aécio Neves afirmou que, se eleito, reduzirá o número de ministérios. Há uma apreensão diante da possibilidade de extinção da Secretaria de Políticas para as Mulheres, a SPM. A senhora acredita que poderá ocorrer retrocessos em pautas femininas com a eleição do candidato?
Marina Pereira: Eu acho que pelas características do discurso conservador que ele representa e pelas próprias atitudes pessoais do candidato existe, sim, um risco de retrocesso nessa área. A própria presidenta perguntou, em um debate, sobre o compromisso dele de redução dos gastos públicos e da estrutura governamental, mas não está dito explicitamente onde isso seria feito.
Há secretarias que são vistas como “supérfluas” por parte da população e que tratam de coisas que, em geral, não são muito valorizadas, como a Secretaria de Políticas para as Mulheres, a Secretaria de Direitos Humanos e a Secretaria de Igualdade Racial. Todas essas questões que são culturais, históricas e que envolvem um processo de transformação da cabeça das pessoas, em geral, são vistas como coisas que têm importância secundária. Então, logicamente elas chamam a atenção como candidatas a terem esse tipo de ajuste.
AGPT: Em sua análise, quais são os principais desafios para a pauta feminina no Brasil nos próximos quatro anos?
Marina Pereira: Acho que a questão da violência continua sendo uma questão central. A violência não somente física, como a própria Lei Maria da Penha coloca, mas aquela violência no tratamento no mercado de trabalho onde, às vezes, você tem discriminação de uma mulher e um homem num mesmo posto de trabalho, ganhando salários diferenciados, ou sendo tratados de forma diferenciada. Há também a questão da violência contra a mulher que está no gestual, no ônibus lotado onde ela não é respeitada, porque tem alguém passando a mão. Tem todas essas formas de violência que continuam, infelizmente, sendo uma pauta central para o avanço dos direitos da mulher.
Mas acho que há também outras questões muito importantes como, por exemplo, a paternidade responsável, que é uma coisa pouco falada. Em grande parte das famílias brasileiras de todas as classes sociais e, especialmente, nas classes mais baixas, a mulher acaba sendo a única responsável pela educação e sustento dos filhos. Na nossa sociedade, o homem é pouco cobrado em relação ao suporte dos filhos ao longo da vida. Como diz aquele ditado muito comum, se alguma coisa der errado a culpa é sempre da mãe. Do pai ninguém lembra. Mudar esse patamar de relacionamento entre homem e mulher e promover a paternidade responsável é fundamental para a transformação das relações de gênero a longo prazo.
Por Victoria Almeida, da Agência PT de Notícias, com fotos de Sheyla Leal