Toda vez que um caso de abuso ou violência sexual é denunciado publicamente por uma mulher, algo se repete. Por um lado, declarações de acolhimento e apoio à vítima; de outro, tenta-se questionar e desmentir não só o relato da vítima, como a própria vítima em si. Para a psicanalista Myriam Uchitel, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, onde coordena o grupo Faces do Traumático, essa reação pode ser entendida pela psicanálise como uma defesa contra a angústia que a ameaça potencial suscita em nós. Na entrevista a seguir, ela também fala sobre a necessidade urgente de se pensar sobre a cultura que produz os abusadores, e sobre os motivos do frequente silêncio das vítimas.
Há cada vez mais relatos de abusos e violências sexuais vividos por mulheres vindo à tona publicamente, e quase sempre tenta-se buscar a justificativa do abuso na mulher abusada e não no abusador. Como a psicanálise vê esse fenômeno?
A partir da psicanálise posso olhar para esse fenômeno como uma tentativa, em boa parte infrutuosa, de diminuir a angústia que uma situação de violência, abuso e violação desencadeia. Trata-se de encontrar na acusação à vítima uma certa racionalidade para um gesto irracional, intempestivo, supressivo e inexplicável que assusta. Como entender uma agressão, um abuso, sem este ter sido provocado? Quem é esse humano tão desprovido de compaixão e provido, por sua vez, de uma implacável desconsideração – e por vezes crueldade – capaz de atentar contra o outro, com frequência mulher ou criança, a favor de seu próprio prazer ou gozo? O gozo de submeter, de provocar sofrimento, de experimentar poder, de desafiar a lei, de pretender instituí-la por conta própria ou, no melhor dos casos, de sair na sua busca, paradoxalmente, na tentativa de ser punido, encontrando em troca um conluio de impunidade que não só o isenta, mas que também o reforça na ideia de que tudo pode. De que não há lei que o obrigue. Que a lei pode estar escrita, mas não funciona, ou pelo menos para “alguns” não funciona. É a própria cultura, ou melhor a própria civilidade, a possibilidade do convívio que com as ações abusivas vai por água abaixo.
Culpar a vítima, desmenti-la, consuma na maior parte dos casos, um duplo ataque: um ataque reiterado contra a vítima, e um ataque contra a própria percepção. A recusa, como “desautorização da percepção”, ou, a negação, no intuito de negar a dor que traria o reconhecimento da realidade, ou incluso as consequências que esse saber traria, são mecanismos de defesa inconscientes presentes com frequência para destituir de verdade, não só a percepção do fato, mas o que poderia vir depois dessa percepção como, por exemplo, reconhecer como abusador algum familiar até então confiável e próximo; ou poder se sentir a partir desse reconhecimento em constante ameaça de que possa vir a ocorrer também consigo ou alguém próximo. A ideia do “algo ela deve ter feito” desloca a responsabilidade do abusador para a vítima, eliminando assim uma das mais sensíveis consequências que a evidência traria: “pode também acontecer comigo”. Tenta-se, dessa forma, criar um espaço seguro, embora sabemos que ilusório, no qual, pode-se pensar que basta se “comportar direito” para não ficar sujeito/a ao abuso.
Entretanto, há algo curioso nessa pergunta que se faz com frequência: a indagação recai sobre quem é o culpado (o abusador? A pessoa abusada?), mas não sobre o que sustenta esse padrão de abuso e agressão. Entendo que precisamos mudar essa lógica, pensar de uma forma mais sistêmica. O que produz essa conduta? Só assim algo pode ser alterado. Denunciar, condenar, e executar a pena do abusador pode até ser necessário, mas não responde ao problema. O abuso sexual é um analisador. Efeito e evidência dos vínculos que primam na nossa sociedade. A violação do corpo humano diz de algo dramático, traumático, mas similar à violação do corpo das instituições, da nossa terra, do nosso planeta. Todos com a mesma frequência, habitualidade e naturalidade, todos com a mesma atitude de cobiça, com o desejo da possessão, de domínio, de ilusão de poder, de reafirmar o que não poderia ser afirmado. Sexo e dinheiro explorados por nossa cultura, estimulados por ela, da forma menos honesta, não têm como poder sancionar seus desvios. Sem dúvida o abuso, o estupro, é executado na maior parte dos casos por homens, mas o jogo de sedução, o vício de conquistar e ser conquistado, não discrimina com tanta nitidez o sexo.
Como a psicanálise vê essa situação de um estado traumático gerado por uma situação de abuso sexual pontual ou contínuo?
Interessante você ter colocado a expressão “estado traumático”. O “estado” poderia apontar para um caráter transitório, não necessariamente consumado numa temporalidade indefinida. Desde essa perspectiva, me parece importante poder diferenciar, um estado traumático (desencadeado de imediato pela experiência em bruto, que pode se manifestar na interrupção dos planos de vida, num estado de paralisia, imobilidade, em transtornos do sono, da alimentação, em pesadelos, em não poder falar, em não poder deixar de falar sobre o acontecido etc.) da instalação do trauma (quando esse acontecimento, não podendo ser processado, mantêm-se como marca indelével e indecifrável, causando verdadeiros estragos no psiquismo de forma duradoura ou permanente, especialmente nas funções de autoconservação e autopreservação do Eu). Poderíamos dizer que todo estado traumático contém em si, potencialmente, as condições para a instalação do trauma.
Penso que o abuso sexual, embora a diferença do estupro, que como regra faz uso da força e violência física, não é menos letal, às vezes ao contrário: usa de forma explícita ou solapada a força do poder, para manipular, para violentar, para submeter, causando assim incalculáveis prejuízos no psiquismo. O abuso atenta contra a integridade psíquica e quebra a confiabilidade no mundo exterior.
Outra maneira de buscar desmentir o relato da vítima é questionar seu comportamento após o abuso. Recentemente vimos isso não só no caso de Dani Calabresa, mas também no da jornalista Amanda Audi, cujo abusador escreveu um artigo assinado em espaço cedido pela Folha de S.Paulo. Existe algo como um comportamento “coerente” ou “esperado” de uma vítima de abuso?
Entendo que vários fatores contribuem para que muitas vezes o desenrolar imediato, como você diz, não esteja de acordo com a expectativa. A vivência do abuso é acompanhada por sentimentos de humilhação, de impotência, vergonha e curiosamente culpa (a mesma que deveria ser do outro, e que passa, por um curioso processo de identificação, a ser da vítima). Esses fatores impedem, muitas vezes, que se venha a expor a situação. Por outro lado, como você assinala, esse frequente não acreditar de quem escuta desestimula a denúncia, e inclusive faz que se dissimule o ocorrido. Reage-se, então, exatamente em sentido contrário ao sentimento genuíno (em vez de tristeza, alegria, por exemplo). É uma defesa frente a afetos que produzem extrema angústia; é como criar um refúgio de sobrevivência distante da realidade agressora. Além disso, o choque produzido, a ameaça potencial do agressor, o medo das consequências e o temor a enfrentá-lo, podem provocar bloqueio, confusão, paralisia ou até indiferença na tentativa de negar e recusar o ocorrido. No caso que citas, por exemplo, da Dani Calabresa, a situação é de enorme complexidade com consequências trabalhistas, jurídicas, afetivas etc. e tudo permeado por muita ambivalência, não é simples. Precisa muitas vezes de um tempo para processar e dar um destino ao que aconteceu. Podemos pensar aqui nos tempos do trauma. Às vezes se passam anos para que o trauma seja lembrado, e se possa reagir a ele. Às vezes não só anos, mas gerações. Nos casos dos traumas transgeracionais, por exemplo, quem trabalha com eles, refere que só numa terceira geração se consegue encontrar uma reação.
Do ponto de vista clínico, quais os impactos desse não reconhecimento social na elaboração do trauma?
A resposta social, o reconhecimento, é suporte indispensável para o processamento do traumatismo, é decisivo para a possibilidade da inscrição e elaboração do que aconteceu.
Ineludível pensar em Ferenczi, psicanalista húngaro, contemporâneo a Freud, cuja contribuição para a retomada e desenvolvimento de uma teoria do trauma foi essencial para a psicanálise. Ele situa o cerne da etiologia traumática – ou seja, suas causas, sua origem – no fenômeno do desmentido, fundada exatamente no não reconhecimento do que aconteceu com a vítima. Sem esse reconhecimento, se instala a dúvida da própria percepção, se paralisa o pensamento, se impede a representação e a integração do vivenciado, produzindo fenômenos como a fragmentação, cisão, regressão, identificação com o agressor, e outro fenômenos que lesam radicalmente o psiquismo.
Qual é o lugar do jornalismo frente a essa situação?
Pergunta importante. Pergunta que faz parte da solução, da necessidade de uma implicação coletiva, de um jornalismo comprometido com os problemas da sociedade. A função social do jornalismo é insubstituível na tarefa de oferecer informação e promover o debate de assuntos que interessam e afetam de maneira categórica à comunidade. O abuso sexual presente em todos os estratos, classe, gênero, idade, especialmente em crianças e adolescentes, está adquirindo contornos epidemiológicos. A denúncia é fundamental, mas penso que não como um fato individual que se resolve ou não em si mesmo, mas como efeito de um sistema. Um sistema abusivo cujos membros reproduzem os padrões aos quais foram submetidos. É possível pensar que numa relação de abuso, que se apresenta em múltiplas situações e de muitas formas, nem sempre é tão nítido e claro o lugar do abusado e do abusador. É a relação, com frequência, que funciona de maneira abusiva. Tudo isso traz à tona a problemática da ética frente ao outro, da ética frente à vítima. Em que lugar fica colocado o sujeito de quem o abusador abusa? Entendo que o desafio é não sair buscando culpados, mas entender, nos diferentes cenários, a responsabilidade que cabe a cada um. Onde se localiza a violência, a doença, ou a perversão, e problematizar e promover a abordagem que cabe.
Dafne Melo é psicanalista e tradutora.
fonte: Diplomatique