Enquanto o Ministério da Educação segue na bravata de combater a “doutrinação marxista” e “a questão da ideologia de gênero” nas escolas, políticas públicas essências para o futuro da educação brasileira parecem estar à míngua. Desta vez, a vítima fatal da grave crise de gestão que se instalou no Ministério, em que 15 assessores foram demitidos em pouco mais de três meses e em que cargos estratégicos da pasta continuam vagos, pode ser o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Diante da falência anunciada da gráfica de segurança máxima, responsável pela impressão das provas do Enem, o Ministério da Educação não apresentou qualquer iniciativa para tentar solucionar o impasse. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão responsável pela Enem, se limitou a emitir uma nota protocolar em que afirma que irá manter o calendário original do Enem e que “existem alternativas seguras sendo avaliadas” para a impressão das provas. Uma resposta vaga, que não detalha quais são essas alternativas seguras, que não aponta quais mecanismos serão utilizados para fazer possível nova contratação e que não tranquiliza os participantes do exame, que estão em um momento decisivo de suas vidas.
A realização do Enem, de sua concepção pedagógica até a divulgação dos resultados, é um processo extremamente complexo, que envolve um planejamento minucioso, com 11 módulos de segurança e mais de 3,6 mil pontos de controle, ao longo de todo o ano. Não há espaço para improvisos. Por isso, não menos grave é o fato do Inep, que possui um corpo técnico de excelência e extremante comprometido com a prova, estar sem presidente e sem diretor de avaliação da Educação Básica, como uma nau sem comandante.
Não podemos deixar de mencionar que, desde o início da atual gestão, o Inep e o Enem têm disso tratados com total indiferença e desrespeito. Ainda em janeiro, foi nomeado para a coordenação do exame um quadro sem qualificação técnica adequada e sem qualquer experiência na educação básica, que chamou os professores brasileiros de “manipuladores” que não querem “estudar de verdade”.
Felizmente, depois de muita pressão social, especialmente de movimentos ligados à educação, essa nomeação foi suspensa. Entretanto, não impediu o ministro Vélez Rodríguez de criar uma comissão de censura do Enem, ou seja, um grupo, que inclui um ex-aluno do ministro, que terá acesso ao ambiente de segurança máxima em que ficam as questões da prova para “verificar sua pertinência com a realidade social, de modo a assegurar um perfil consensual do exame”, uma total violação do sigilo da prova e da própria Teoria de Resposta o Item.
Os governos Lula e Dilma transformaram o Enem em uma política pública de reconhecido sucesso. Desde sua reformulação, o Enem, associado a uma série de políticas articuladas de inclusão, permanência e indução da qualidade, é o grande caminho de oportunidades para o acesso republicano de milhões de jovens à educação superior no Brasil.
O novo modelo do Enem combateu a máfia dos vestibulares e permitiu que qualquer brasileiro, com um único exame nacional, disputasse vagas no ensino superior, algo impensável até então. Antes do novo Enem, apenas os filhos da elite tinham condições de realizar diversos vestibulares, nas mais variadas cidades do país, para disputar essas vagas, especialmente as públicas, isso é: o antigo vestibular descentralizado criava um sarrafo econômico já na seleção, no que se refere à possibilidade de fazer as provas.
O Enem também passou a ser utilizado como exame de acesso ao Sisu, programa que oferece vagas nas universidades públicas e institutos federais. Associada ao Enem, foi criada a política de cotas, responsável atualmente por 50% das vagas nas universidades públicas, com foco específico para os mais pobres, negros e indígenas, de acordo com o peso demográfico dessas populações em cada estado. Por isso, o Enem consolidou-se como um dos pilares fundamentais para uma inclusão, especialmente dos mais pobres, na educação superior.
Prova do êxito dessas políticas é o fato irrefutável de que, nos governos do PT, as matrículas na educação superior saltaram 3,4 milhões para 8.2 milhões. Destas, 1,8 milhão foram no ProUni e 2,3 milhões no Fies, programas que utilizam o Enem como porta de acesso e que enfrentam a questão da baixa renda.
Falamos de uma verdadeira revolução social, que possibilitou um avanço real no regaste do nosso passado de exclusão na educação No Brasil, temos 16,8 milhões de jovens que concluíram o ensino médio e não acessaram o ensino superior, aos quais se somam cerca de 2,2 milhões que concluintes do ensino médio todos os anos, ou seja, uma gigantesca demanda reprimida por acesso à educação superior, que o Enem e demais políticas inclusivas vinham ajudando a enfrentar.
Não podemos abrir mão desse caminho de oportunidades em que se transformou o Enem: um exame extremamente inclusivo e estratégico, que permite aos mais pobres sonharem com a chance de cursar uma universidade. Nossa obrigação é defender essa política pública, que beneficia milhões de brasileiros e de brasileiras todos os anos.
O que o Ministério da Educação, o Inep e o Enem precisam é de mais gestão, de mais diálogo, de mais inclusão e de menos devaneios ideológicos. Ao persistir em sua empreitada quixotesca, a atual gestão do Ministério da Educação estará fadada a jogar nossa educação nos braços do obscurantismo e do retrocesso, com impactos profundos e dolorosos para as gerações futuras.
Danilo Molina é jornalista, foi assessor-especial da Casa Civil da Presidência da República e assessor do Ministério da Educação e do Inep.