Frente à euforia da mídia tradicional em razão da iminente aprovação da reforma da previdência na Câmara dos Deputados, passa quase desapercebida mais uma agressão contra o estado democrático e de direito no Brasil, especialmente no tocante ao direito das chamadas minorias. É que, na última segunda-feira (8/7), um incêndio atingiu a principal casa de reza dos Guarani-Kaiowá, na reserva indígena de Dourados, cidade a 233 km de Campo Grande (MS).
No espaço, que é considerado sagrado pelos Guarani-Kaiowá, aconteciam atividades religiosas, com práticas de cânticos, rezas e danças. Além da própria casa da reza, última da etnia, o fogo consumiu um objeto litúrgico com mais de 180 anos de história e deixou uma perda espiritual irreparável para aquele povo.
Infelizmente, a suspeita é de que mais essa tragédia tenha ocorrido em razão de um incêndio criminoso. Além de não garantir o mínimo de segurança e de não assegurar os direitos dos Guarani-Kaiowá, até mesmo dentro de uma reserva indígena, a Funai, órgão indigenista oficial do Estado brasileiro, permanece em silêncio absoluto sobre o caso.
Se o Brasil ainda é um estado democrático e de direito, é imperativo que as autoridades se manifestem, apurem e ofereçam uma rápida resposta para a sociedade sobre o que de fato aconteceu com casa de reza dos Guarani-Kaiowá. Mais do que isso, caso seja comprovado que o incêndio foi de fato criminoso, os responsáveis devem ser penalizados dentro dos parâmetros estabelecidos pela lei e respeitado o devido processo legal.
Criminoso ou não, o fato é que esse incêndio não pode ser visto como uma questão isolada. Como já venho denunciando há tempos, é evidente é notória a escalada do ódio na nossa sociedade. O Estado brasileiro tem falhado de forma sistemática na proteção das garantias e dos direitos coletivos e individuais das chamadas minorias, como negros, mulheres, pessoas LGBTs+, indígenas, quilombolas, adeptos de religiões de matrizes africana, entre outros.
Não podemos ignorar que, no Brasil, a ascensão do fundamentalismo extremista fascistóide vem acompanhado do desmonte de uma série de políticas públicas que procuravam assegurar, dentre outras coisas, as garantias e os direitos das minorias e o próprio estado de bem-estar social. Não é eventualidade que sejam cada vez mais frequentes nos noticiários os casos de feminicídio, de intolerância religiosa, de racismo e de agressões contra pessoas LGBTs+.
Para sobrevivermos como sociedade, é fundamental o resgate de uma cultura de paz e de respeito integral aos direitos humanos de todos e de todas, independentemente de condição social, gênero, religião, orientação sexual e raça. Trata-se de uma questão civilizatória e é a base da nossa Constituição Cidadã de 1988.
O estado democrático e de direito, tal qual é concebido na nossa constituição, não consiste apenas na garantia de que um cidadão possa votar e que possa ser eleito. Envolve, também, uma série de valores, como o respeito à dignidade da pessoa humana, a igualdade de direitos entre os indivíduos, o direito à liberdade religiosa, de expressão e de manifestação, entre outros. Mas, principalmente e acima de tudo, o direito à vida, como valor absoluto e inviolável.
Como civilização e sociedade, não podemos sucumbir ao discurso do ódio e do preconceito, que está cada vez mais desenvergonhado em nosso país. O dever de todos aqueles que acreditam e lutam pelo estado democrático e de direito, e os valores que esse estado representa, é a defesa de uma cultura de paz, que respeite os direitos individuais e coletivos, especialmente dos mais fragilizados. O exercício integral da cidadania não é e não pode ser um direito menor.
Danilo Molina é jornalista e servidor de carreira. Foi assessor especial da Casa Civil da Presidência da República e assessor do Ministério da Educação.