Da Redação, Agência Todas
Com seis anos de idade, Denice entra no ônibus, rumo à escola, em um dia chuvoso na periferia de Salvador. Da janela, vê sua mãe parada no ponto de ônibus, toda encharcada e com barro até a cintura. O ônibus sacoleja e se distancia aos poucos, enquanto o olhar obstinado e determinado daquela que ficou transmite a sensação de dever cumprido. “Ela não teve medo”, pensou a pequena Denice.
Nesse dia, a casa da família amanheceu alagada. Dona Cleonice, serenamente, acordou as crianças que ficavam na parte de baixo, levou todas para a parte de cima, trocou a roupa, deu café da manhã, e levou no braço um a um dos cinco filhos, de casa até o ponto de ônibus para não perderem a escola.
Denice Santiago é a terceira de uma família de cinco filhos, nascida na periferia de Salvador, Bahia, no bairro São Gonçalo do Retiro. Ela dividiu a vida em três bairros: o de origem, Barros Reis e Cabula, onde construiu suas amizades, pariu seu filho e o cria até hoje.
Filha de Doberval Rosario, o homem mais inteligente que conhece, embora tenha completado até a quarta série; e filha de Cleonice Rosario, a mulher mais forte e determinada que já cruzou por sua existência; é assim que a pré-candidata a prefeita de Salvador define as raízes e a origem da própria força.
Foi com a quarta filha, recém-nascida nos braços, que a mãe de Denice voltou para a escola e concluiu o Ensino Fundamental II. O motivo? Não conseguia mais acompanhar os deveres da escola das mais velhas — tão determinada em seu projeto de vida de fazer o acesso à educação a melhoria da qualidade de vida de seus frutos.
Estudante de escola pública, bolsista de escola particular, Denice ingressa na Polícia Militar da Bahia aos 18 anos. Ela é a primeira turma de sargento mulheres da PM. Hoje é major, formada em psicologia, mestre em desenvolvimento territorial e gestão social, especializada em direitos humanos e, agora, doutoranda do núcleo de estudos interdisciplinares de mulheres, gênero e feminismo da universidade federal da Bahia. Naquele dia, a pequena Denice não apenas rumou pelo itinerário do ônibus até a escola, mas também começou a trilhar obstinadamente uma trajetória de lutas e conquistas pelos direitos das mulheres.
Responsável pela Ronda Maria da Penha, em Salvador, o projeto ganhou o selo de práticas inovadoras pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, sendo a primeira PM do país a receber esta premiação em 2017. No mesmo ano, por indicação da senadora Lídice da Mata, foi premiada no Senado e com o prêmio Bertha Lutz, única PM do país a receber. Além do prêmio Cláudia, na categoria políticas públicas.
“O que você está fazendo com a minha filha?”
Como tantas mulheres dessa geração, Denice é filha de uma feminista, mas que não necessariamente se apropria dessa alcunha. Desde pequena, dona Cleonice dizia: “primeiro vai estudar, trabalhar, ter sua casa, ter seu carro, para depois pensar em casa, pensar em homem, minha filha. Porque se o homem não prestar, você manda embora e a casa é sua. Mulher não pode depender de homem”. O que a mãe de Denice dizia, naquela época, a partir da vivência dela, é o que hoje a gente chama de “autonomia”. Mas dona Cleonice deu muito mais do que isso.
“Ela me empoderou, me fortaleceu e não me limitou a casamentos, que era a prática da época. Ela me deu a certeza que eu não tinha limitação cognitiva, nem psicológica, portanto seria capaz de aprender qualquer coisa, tal e qual homens”.
Essa certeza, contudo, foi construída à base da enorme capacidade dessa mulher de 1,60m de se agigantar para defender suas crias — de todo e qualquer tipo de preconceito ou discriminação.
Quando Denice tinha 4 anos, sua mãe estava grávida de sete meses. Brincando com seus irmãos, ela caiu e quebrou o braço. Lá foi Dona Cleonice pegar o ônibus com a filha nos braços e a outra na barriga. Por conta da gravidez, ela não pôde entrar na sala de raio-x. Quando o auxiliar foi colocar o braço da pequena na máquina, Denice soltou um grito de dor.
“Eis que minha mãe surge, parecendo o mestre Xao-Lin, dando chute na porta, abriu a porta de qualquer jeito e gritou ‘O que é que você está fazendo com a minha filha?’”.
Cuidar de quem mais precisa
Não há uma só lembrança da infância de Denice em que esteja apenas ela e os irmãos. A sua casa era sempre repleta de gente e seu pai ajudava diversas pessoas da comunidade — com o mesmo amor e carinho que cuidava dos próprios filhos. Seu pai, quando podia, pagava escola, transporte e convencia as pessoas a trilharem caminhos melhores para a própria vida. Com isso, ela aprendeu em casa que o mais importante na vida é cuidar das pessoas.
Foi o reflexo desse olhar generoso, acolhedor e solidário da própria família que ela enxergou, na prática, no projeto político do Partido dos Trabalhadores. Ao completar 16 anos, ela caminhou três quilômetros para tirar o próprio título de eleitor, porque já tinha candidato certo: presidente Lula.
Apesar da preferência eleitoral, ela não tinha como foco ingressar na política partidária. Com a experiência da Ronda Maria da Penha e o convite para atuar mais diretamente na política, Denice viu a possibilidade de ampliar as transformações na vida das mulheres que poderiam ir além daquelas atendidas pelo programa. Agora, é um projeto de vida.
Quando eu trabalhei no governo Wagner [ex-governador da Bahia], na secretaria de política para as mulheres, eu pude ver como era a atuação desse partido que tanto se assemelhava à minha família, tanto se assemelhava àquilo que eu acredito de vida. Essa inversão de prioridades e de pensar a partir das pessoas que precisam, e não das pessoas que visam lucrar em cima das outras. De atuar para realmente mudar a vida das pessoas e não oferecer ajudas pontuais que geram dependência. Isso me foi muito caro e valioso ver dentro do PT.
Ronda Maria da Penha
Em 2006, Denice Santiago e Cláudia Mara criaram o primeiro, e até hoje único, núcleo de gênero para debater questões femininas dentro da PM — o Centro “Maria Felipa”. Ele nasceu no mesmo ano da Lei da Maria da Penha, e Denice passa a ser representante da corporação nas reuniões que pactuavam, junto com a rede sócio-assistencial, as ações de proteção às mulheres em situação de violência doméstica.
A partir do contato com a experiência pioneira do Rio Grande do Sul, ela entrega em 2015 a primeira Ronda na cidade de Salvador. Hoje, já funciona em outras 18 cidades. Trata-se de uma unidade especializada da PM que tem como missão proteger mulheres em situação de violência doméstica e familiar com medida protetiva de urgência.
“A Ronda não atua apenas no combate, porque prender é fácil. Está comprovado que pouco ou nada adianta encarcerar seres humanos, porque não modifica o comportamento. O homem, mesmo se preso, é possível que se relacione com outras mulheres utilizando a violência como instrumento. E é possível que essa mulher, se não tiver apoio e não for ressignificada, continue convivendo com relacionamentos abusivos”, Denice.
O foco nas ações de prevenção são de práticas que dialogam com homens, mulheres, adolescentes, crianças e idosos; práticas lúdicas; diálogos de homens com homens sobre o fim da violência contra a mulher, além de palestras, campanhas de conscientização entre outras diversas iniciativas são o carro chefe da atuação de Denice. O exemplo da Bahia serviu para formar outras sete rondas no país inteiro, além de consultoria na Colômbia e intercâmbio de informações com a polícia metropolitana de Londres.
Em sua trajetória na Ronda Maria da Penha, a major Denice Santiago já teve que lidar com situações de mulheres que tiveram a mão decepada, o rosto queimado com ácido, duas pernas decepadas. O seu lema é que todo tipo de violência deve gerar indignação, desde a ameaça aparentemente mais banal até casos extremos como esses. Mas conquista mesmo, conta Santiago, é quando Denice consegue fazer com que a mulher saia da situação de violência antes mesmo de sofrê-la.
Eu não atuo por mais delegacias, mais rondas, porque significa dizer que a violência continua. Eu atuo para proteger as mulheres, melhorar o acesso e a qualidade do serviço para garantir que a denúncia seja feita e tenha consequências. Mas a minha meta mesmo é por uma profunda transformação cultural que passa pela educação, não apenas formal, mas social também”.