O Brasil poderá deixar mais de 30 milhões em situação de fome extrema, adverte o idealizador do programa Fome Zero e ex-diretor da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. Em entrevista ao colunista Jamil Chade, do portal ‘UOL’, Graziano avaliou o quadro de insegurança alimentar no país e apontou as razões pelas quais o Brasil voltou ao Mapa da Fome das Nações Unidas. Entre elas, o desmonte da estrutura de políticas sociais a partir dos governos Temer e Bolsonaro.
“É preciso ressaltar que o Brasil voltou ao Mapa Mundial da Fome – ou seja, passou a ter mais de 5% da sua população em situação de insegurança alimentar grave – antes mesmo da pandemia”, apontou o ex-diretor da FAO, na entrevista. ”Isso se deve fundamentalmente a dois fatores: primeiro, a crise econômica que o país já enfrentava e que se traduzia em baixos níveis de crescimento desde 2015 e altos níveis de desocupação e trabalho precário; e segundo, e não menos importante, é o desmonte das políticas de alcance social, entre elas, a de segurança alimentar e nutricional implantada no país desde o início dos anos 2000, e amparada constitucionalmente para garantir a todos os brasileiros uma alimentação saudável”, explicou.
Para Graziano, que ajudou a estruturar, durante o governo Lula, as bases de programas que viraram referência mundial no combate à fome e à pobreza, o fim do auxílio emergencial deverá agravar a situação de penúria de milhões de famílias brasileiras. “Um eventual corte do auxilio antes da retomada plena – que deverá demorar pelo menos até final de 2021, avaliando o cenário mais otimista depois de a vacina imunizar a maioria da população – poderá incorrer em risco de uma crise alimentar similar a das fomes extremas que tristemente caracterizaram o continente africano no século passado, e também em algumas regiões mais pobres da América Latina”, sugeriu.
Graziano chamou a atenção para o fato de que, já antes da pandemia, mais de 15 milhões de pessoas se encontravam em situação de extrema vulnerabilidade social. “Esse número pode dobrar facilmente se o auxílio emergencial for cortado ou o seu valor for insuficiente para comprar a cesta básica, especialmente no caso de se continuar a escalada inflacionária dos alimentos básicos, como se percebe atualmente”, advertiu.
O especialista considera que as políticas de segurança alimentar devem ser prioridade dos governos e não devem ser tratadas como ações isoladas ou temporárias. Ele citou o desmonte do Programa de Aquisição de Alimentos e da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), cuja atuação é responsável pela oferta de estoques para até três meses de produtos básicos, como arroz e feijão. É essa oferta que garante o equilíbrio para evitar altas nos preços dos alimentos.
“Esse programa chegou a dispor de R$ 2 bilhões no Orçamento da União, mas nos últimos esse valor foi reduzido em dez vezes, passando a contar apenas com R$ 200 milhões”, denunciou Graziano. “Para não falar da Conab, que está sendo sucateada para ser privatizada – seus armazéns estão sendo fechados ou vendidos”, lamentou ele.
Instituto Fome Zero
Para manter o combate à fome no centro do debate público no Brasil e em nível internacional, Graziano anunciou a criação do Instituto Fome Zero, organização de apoio a políticas e ações voltadas para a segurança alimentar. O lançamento oficial está programado para esta sexta-feira (16), dia em que a FAO celebra o Dia Mundial da Alimentação. Segundo Graziano, o programa também irá preservar a memória do Fome Zero, programa que serviu de modelo de gestão para países da África, da América Latina e da Ásia.
“Com a marca permanente da pandemia da covid-19, o atual quadro de esgarçamento social somente deverá se agravar e soluções paliativas não colocarão o país de volta na trajetória da segurança alimentar e nutricional”, observou Graziano. “Daí a necessidade, pontua o pesquisador, de o país contribuir com novas ideias e propostas para a erradicação da desnutrição e da obesidade. “Precisamos que todos voltem a ter assegurados o Direito Humano à Alimentação Adequada, como previsto em nossa Constituição”, justificou.