Depende do/a interlocutor/a. Falar em “Direitos Humanos” para algumas pessoas é tão óbvio que a definição é auto explicativa. Para outros, não basta de um artifício para “proteger bandido”. Na academia, o debate sobre o conceito passa pela origem da “lei natural” da Roma Antiga, pelo pacto social para nos mantermos como civilização, desemboca nos limites do “universalismo” em mundo de culturas tão diversas e desagua na Declaração da ONU, quando uma maioria de países historicamente exploradores e colonizadores decidiram que, bem, depois de muitos genocídios, massacres e duas guerras mundiais, era hora de “parar e humanizar isso tudo que está aí”.
Quando se trata da polarização à brasileira de que “Direitos Humanos” é uma pauta exclusiva “da esquerda”, além de um engodo histórico, é a forma que a extrema direita — que se baseia na desinformação para manipular as pessoas — encontrou para não tocar em problemas profundos do país, desresponsabilizando o Estado, culpando uma figura imaginária e forjando soluções “fáceis” que não se aplicam na realidade .
Ou seja, ao negar a existência dessas questões como o preconceito (racismo, machismo, homofobia, etc) e outros dilemas complexos da nossa sociedade como a herança colonialista, escravista, o genocídio de negros, indígenas, a extrema direita pinta o país branco, elitista, fascista e violento dos próprios sonhos e culpa todo aquele que não estiver de acordo com esse projeto. Daí, surgem as famosas figuras e expressões caricatas para desqualificar a luta de Direitos Humanos como o “bastão de porrada” e o bordão “Direitos Humanos para humanos direitos”.
Como assim não é exclusivo “da esquerda”?
Nos Estados Unidos, por exemplo, Direitos Humanos é uma pauta encampada também por organizações e partidos liberais – que, convenhamos, estão bem longe do lado de cá da força. Aqui no Brasil, a luta por garantia de Direitos Humanos na Constituição passou fundamentalmente por mobilizações sociais, populares e organizações de esquerda e centro esquerda.
Mas isso diz muito mais sobre o nosso país – tão violento, conservador e reacionário que coube apenas a esse campo encampar a luta – do que necessariamente sobre a tal “ideologia” por trás da pauta. Faz parte da atuação da esquerda ser a favor de Direitos Humanos? Sim, mas não é a única do espectro político e partidário a pautar esse debate. Existem diferenças entre como a esquerda e a direita atuam e, principalmente, compreendem as causas e as formas de garantir Direitos Humanos para todas as pessoas.
De maneira bem geral, a esquerda parte do princípio de que é preciso reconhecer as contradições do capitalismo e mudar esse sistema para que as pessoas vivam com dignidade e respeito à pessoa humana; enquanto a direita acredita que é possível fazer apenas pequenos ajustes, mantendo essas contradições. A extrema direita brasileira, principalmente bolsonarista, já dissemos, não é capaz de fazer uma análise concreta da realidade, portanto cria artifícios sobre o tema que impedem qualquer debate consistente.
Por que dizem que é para “proteger bandidos”?
Primeiro, é preciso salientar que Direitos Humanos existem para proteger indivíduos da arbitrariedade do poder do Estado. Nesse sentido, os Direitos Humanos colocam limites à atuação da força estatal cuja face mais conhecida é a força policial. Em um debate raso, as pessoas transformam isso em “tirar o poder da polícia de combater os bandidos”. No entanto, é justamente o contrário.
Os direitos humanos defendem um julgamento justo e público para todas as pessoas, independente se é rico ou pobre, e a responsabilização dos indivíduos. No Brasil, esse tema esbarra em questões complexas como a responsabilidade do Estado e as diversas limitações da nossa sociedade, desde as mais profundas e arraigadas — como o racismo, o machismo, o colonialismo, a desigualdade social — até às mais institucionais — como as falhas do sistema penal, da justiça, do judiciário, as políticas de encarceramento em massa etc.
Portanto, em vez de avançar nas políticas que, de fato, vão à raiz do problema da criminalidade para combatê-la, Bolsonaro e seus aliados lançam mão de falsas soluções que se apresentam como fáceis baseadas nas estruturas que, contraditoriamente, retroalimentam a violência. Então, lança-se mão do jargão “bandido bom é bandido morto”, julgamento público pelo racismo (como foi o último caso do Carrefour), chamar o jovem branco de “usuário” e o jovem negro de “traficante”, escalar uma política de encarceramento em massa, avançar no genocídio sobre a população jovem e negra, legitimar e relativizar feminicídios, matar e esconder crianças por bala perdida, aumento da desigualdade social, etc.
Por que falam “Direitos Humanos para humanos direitos”?
Por trás dessa fala, está um ‘iceberg’ de preconceitos das mais diversas ordens que caracterizam a sociedade brasileira. Quando se atribui o trocadilho “humanos direitos” é o equivalente do famoso “cidadão de bem”, outra figura criada pelo fascismo à brasileira. Em poucas palavras, presume-se uma pessoa branca, classe média ou rica, homem, heterossexual, cristão, bem colocado profissionalmente. Ou seja, só seria “digno de reivindicar direitos” uma pessoa que atendesse a esses requisitos, todo o restante da sociedade estaria sujeito à arbitrariedade estatal, sem direito a qualquer tipo de liberdade.
Os Direitos Humanos trabalham no sentido oposto dessa lógica, pois presume em seu artigo fundamental de que todos os homens e mulheres nascem livres. Todos temos os nossos pensamentos e ideias e devemos ser todos tratados da mesma maneira.
Como Bolsonaro ataca os Direitos Humanos? Se for pelas incontáveis declarações e atitudes, não caberia aqui. Só nesta semana, podemos levantar o corte de acesso aos exames de HIV e IST’s, o fim dos programas de saúde mental, a criação de obstáculos para implementar a vacina CoronaVac e a continuação da infindável rede de ódio e desinformação que desmobiliza a população a tomar os cuidados mínimos necessários para se manter protegida da Covid-19.
No entanto, o ataque direto à política de Direitos Humanos não é novidade. Em carreata, ainda em campanha, o então candidato declarou “Conosco não haverá essa politicalha de Direitos Humanos”. A Ponte fez uma lista de ações e declarações que atacam direitos fundamentais promovida pelo governo Bolsonaro: População LGBT excluída; Posse de arma liberada; Monitoramento de ONGs; Sequestro de menina indígena pela Ministra Damares Alves (reportagem revista Época); Faculdade para elite; suposta ligações com milícias; mudança da embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém.
Podemos acrescentar a “lista de detratores do governo”; a tentativa de intervenção no caso da menina de 10 anos que foi estuprada pelo tio e teve abortar; a proposta reduzida de auxílio emergencial de apenas 200 reais (que foi derrotada pelo Congresso); o uso de apenas 30% da verba do ministério da saúde para combate à Covid-19; dentre tantos outros. Em todos os casos, o presidente coloca em risco princípios básicos dos Direitos Humanos de todos os brasileiros.
Em 2020, Bolsonaro foi denunciado por censuras e ataques à imprensa no Conselho dos Direitos Humanos da ONU, em julho, e na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA), em março. Até julho desse ano, presidente Jair Bolsonaro, seus filhos, ministros e assessores realizaram um total de 449 ataques contra jornalistas desde o início de seu mandato, em janeiro de 2019. Os dados foram apresentados nesta segunda-feira ao Conselho de Direitos Humanos da ONU pela entidade internacional Artigo 19.
Como surgiu esse lance de Direitos Humanos?
A definição da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU é a mais utilizada — como um conjunto de normas que reconhecem e protegem a dignidade de todos os seres humanos, independente de sua nacionalidade, cor, raça, religião, gênero, etnia, orientação sexual. Eles funcionam como princípios básicos para o convívio em humanidade, uma espécie de pacto coletivo internacional para que as pessoas vivam com dignidade e respeito de umas pelas outras e, principalmente, que as pessoas não sejam vítimas da arbitrariedade do poder do Estado.
O que parece ser aparentemente simples e “muito óbvio” levou, literalmente, milhares de anos para ser sintetizado.
Em 539 a.c, depois de conquistar a Babilônia, Ciro, O Grande, anunciou que todos os escravos eram livres e que cada um podia exercer sua religião. Ele escreveu isso (dentre outras coisas) em um pedaço de barro chamado “O cilindro de Ciro”. A ideia se espalhou logo por Grécia, Índia, Roma e, em 27 A.C, o Império Romano percebeu que as pessoas seguiam certas leis, mesmo não declaradas, a chamada “lei natural”. Não que ela não fosse absolutamente ignorada por quem estava no poder (ditadores, imperadores, etc), mas o debate mobilizou a intelectualidade romana sobre princípios de liberdade, arbítrio e pactos sociais.
A partir de 1215, com a assinatura da Magna Carta, na Inglaterra, o monarca assinou um documento de que ninguém poderia anular os direitos do povo, nem mesmo um rei. Depois, tivemos em 1628 a Petição dos Direitos, em 1689 a Carta Britânica de Direitos. Em 1776, os EUA declaram independência e então, outro grande marco foi em 1789 com a Revolução Francesa.
Os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade sintetizavam uma lista de direitos ainda maiores dos que haviam sendo colocados e os franceses insistiam que se tratavam de “leis naturais” e não inventadas. Portanto, o conceito romano de “lei natural” foi se tornando “direito natural”. Em 1800, Napoleão surge para “acabar com isso tudo que está aí” e os países da Europa se unem e derrotam o ditador.
A partir de 1814, os países europeus avançam a passos largos na garantia de direitos… pela Europa. E apenas na Europa. O restante do mundo seguia sendo invadido, conquistado, colonizado e consumido pelos próprias nações europeias. Em 1915, Mahatma Gamdhi lidera protestos na Índia e insiste que todas as pessoas tinham direitos, não apenas na Europa.
Com a I Guerra Mundial em andamento, a mais sangrenta da história, as nações entram em uma roda histórica de massacres e genocídios avassaladora — que acompanha o avanço e o acirramento do capitalismo selvagem sobre os povos. A II Guerra Mundial eclode menos de duas décadas depois da primeira marcada pela organização e sustentação política da lógica nazista.
Em 1945, surge a Organização das Nações Unidas (ONU) e, sob a supervisão de Eleanor Roosevelt, presidenta da comissão da ONU, os países concordaram um conjunto de direitos que se aplicam absolutamente a todos, criando assim a “Declaração Universal dos Direitos Humanos” — que se resumem nos trinta artigos abaixo:
- Todos Nascemos Livres e Iguais. Nascemos todos livres. Todos temos os nossos pensamentos e ideias. Deveríamos ser todos tratados da mesma maneira.
- Não Discrimine. Estes direitos são de todos, independentemente das nossas diferenças.
- O Direito à Vida. Todos temos o direito à vida, e a viver em liberdade e segurança.
- Nenhuma Escravatura. Ninguém tem o direito de nos escravizar. Não podemos fazer de ninguém nosso escravo.
- Nenhuma Tortura. Ninguém tem o direito de nos magoar ou de nos torturar.
- Você Tem Direitos Onde Quer que Vá. Eu sou uma pessoa igual a si!
- Somos Todos Iguais Perante a Lei. A lei é igual para todos. Deve tratar-nos com justiça.
- Os Direitos Humanos são Protegidos por Lei. Todos podemos pedir ajuda da lei quando formos tratados com injustiça.
- Nenhuma Detenção Injusta. Ninguém tem o direito de nos prender sem uma razão válida, de nos manter lá, ou de nos mandar embora do nosso país.
- O Direito a Julgamento. Se formos julgados, o julgamento deve ser público. A pessoa que nos julga não deve ser influenciada por outras pessoas.
- Estamos Sempre Inocentes até Prova em Contrário. Ninguém deveria ser acusado por fazer algo até que esteja provado. Quando as pessoas dizem que fizemos uma coisa errada temos o direito de provar que não é verdade.
- O Direito à Privacidade. Ninguém deveria tentar ferir o nosso bom nome. Ninguém tem o direito de entrar na nossa casa, abrir as nossas cartas ou incomodar-nos ou à nossa família sem uma boa razão.
- Liberdade para Locomover Todos temos o direito de ir aonde quisermos dentro do nosso próprio país e de viajar para onde quisermos.
- O Direito de Procurar um Lugar Seguro para Viver. Se tivermos medo de ser maltratados no nosso país, temos o direito de fugir para outro país para estarmos seguros.
- Direito a uma Nacionalidade. Todos temos o direito de pertencer a um país.
- Casamento e Família. Todos os adultos têm o direito a casar e a terem uma família se quiserem. Os homens e as mulheres têm os mesmos direitos quando estão casados ou separados.
- O Direito às Suas Próprias Coisas. Todos temos o direito a termos as nossas próprias coisas ou de as partilhar. Ninguém nos deveria tirar as nossas coisas sem uma boa razão.
- Liberdade de Pensamento. Todos temos o direito de acreditar naquilo que queremos, a ter uma religião ou a mudar de religião se quisermos.
- Liberdade de Expressão. Todos temos o direito de decidir por nós mesmos, de pensarmos o que quisermos, de dizer o que pensamos, e de partilhar as nossas ideias com outras pessoas.
- O Direito de se Reunir Publicamente. Todos temos o direito de nos reunir com os nossos amigos e trabalhar em conjunto em paz para defender os nossos direitos. Ninguém nos pode forçar a juntar-mo-nos a um grupo se não o quisermos fazer.
- O Direito à Democracia. Todos temos o direito de participar no governo do nosso país. Todos os adultos devem ter o direito de escolher os seus próprios líderes.
- Segurança Social. Todos temos o direito a uma casa, medicamentos, educação, a dinheiro suficiente para viver e a assistência médica se estivermos velhos ou doentes.
- Direitos do Trabalhador. Todos os adultos têm o direito a um emprego, a um salário justo pelo seu trabalho e a inscrever-se num sindicato.
- O Direito à Diversão. Todos temos o direito a descansar do trabalho e a relaxar.
- Comida e Abrigo para Todos. Todos temos o direito a ter uma boa vida. As mães, as crianças, os idosos, os desempregados ou os deficientes e todas as pessoas têm o direito a receber cuidados.
- O Direito à Educação. A educação é um direito. A escola primária deveria ser gratuita. Devemos aprender coisas sobre as Nações Unidas e a conviver com os outros. Os nossos pais podem escolher o que devemos aprender.
- Direitos de Autor. Os direitos de autor é uma lei especial que protege as criações artísticas e a escrita; os outros não podem fazer cópias sem autorização. Todos temos o direito à nossa forma de vida e a gozar as coisas boas que a arte, a ciência e o conhecimento trazem.
- Um Mundo Justo e Livre. Deve existir ordem para que todos possamos gozar os direitos e as liberdades no nosso país e em todo o mundo.
- Responsabilidade. Temos o dever para com as outras pessoas e devemos proteger os seus direitos e liberdades.
- Ninguém Pode Tirar-lhe os seus Direitos Humanos.
Os limites do universalismo
Apesar dos esforços da Declaração Universal da ONU em garantir um conjunto de preceitos que se aplicam a todos os habitantes da Terra, a diversidade de sistemas culturais acaba impossibilitando a valorização absoluta de um marco único, externo e universal. Por isso, várias gamas e posições intermediárias acabam por complementar um ou outro aspecto desse conjunto geral de artigos. Muitas declarações de direitos humanos emitidas por organizações internacionais regionais colocaram um acento maior ou menor no aspecto cultural e deram mais importância a determinados direitos de acordo com sua trajetória histórica.
A Organização da Unidade Africana proclamou em 1981 a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos que adicionou princípios tradicionalmente negados na África, como o direito de livre determinação ou o dever dos Estados de eliminar todas as formas de exploração econômica estrangeira. Mais tarde, os Estados africanos que acordaram a Declaração de Túnez, em 6 de novembro de 1992, afirmaram que não se pode prescrever um modelo determinado a nível universal, já que não podem se desvincular as realidades históricas e culturais de cada nação e as tradições, normas e valores de cada povo. Em uma linha similar se pronunciam a Declaração de Bangkok, emitida por países asiáticos em 1993, e de Cairo, firmada pela Organização da Conferência Islâmica em 1990.
Redação, Elas Por Elas