Katiele Bartoli Fisher e Norberto Fischer são pais de Anny Fischer. A menina, de seis anos de idade, é portadora da rara síndrome de epilepsia CDKL5. A doença apresentou-se pela primeira vez aos 45 dias de vida, quando ela sofreu a primeira de suas intermináveis crises convulsivas que perduram até hoje. Segundo o pai, Anny chegou a ter 80 convulsões em uma mesma semana.
Na luta por tratamento para a filha, o casal, que mora em Brasília (DF), descobriu, num site americano de apoio a pais com filhos portadores da mesma síndrome, o canabidiol (CBD). Trata-se de uma das mais de 300 substâncias oriundas da planta cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha.
“Estudamos e superamos nosso preconceito e decidimos testar”. Um dos pais americanos contatados pela internet adquiriu e despachou o medicamento pelos Correios para o Brasil.
“Na semana em que tomou a primeira dose, ela teve 80 crises convulsivas”, relembra Norberto.
Desde então, Anny é símbolo de uma das mais amplas discussões sobre a liberação do CDB no Brasil.
Na terça-feira (18) o assunto chegou ao Congresso Nacional. A Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, reuniu especialistas no assunto, estudantes e pacientes que sofrem de epilepsia refratária, autismo, dor neuropática crônica, entre outros males que têm crises atenuadas pela substância, para debater o tema.
Segundo o deputado Dr. Rosinha (PT-PR), que participou da discussão, o assunto chegou ao espaço ideal para o debate de tema tão complexo.
“É um medicamento que tem ajudado muita gente e é preciso ampliar a discussão e esclarecer a todos nós”, afirma o parlamentar.
Neurocientista e professor da Universidade de Brasília (UnB), Renato Malcher foi um dos participantes da mesa. Ele conta que desde 1843 já se conhece no meio científico o poder da maconha no tratamento da epilepsia.
“Há 30 anos o professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Elisaldo Carlini demonstrou os efeitos anticonvulsionantes do canabidiol”, explica.
Segundo Malcher, os sintomas da epilepsia podem causar autismo. “É muito importante que o canabidiol seja reclassificado para permitir o uso a pessoas portadoras de epilepsia refratária e autismo severo”, defende.
Preconceito – Neste mês completa-se um ano que Anny usou o CBD pela primeira vez. Desde então, a evolução do tratamento é visível. Os pais lembram que Anny não se mexia e não apresentava reações a estímulos. Nem mesmo à dor.
“Hoje é uma criança ativa, que chora, ri, brinca e está quase ficando de pé”, comemora Norberto.
Os pais lutam para que as dificuldades de importação do medicamento diminuam e que o CBD chegue com maior facilidade até eles e a milhares de outras famílias que enfrentam dramas semelhantes.
Para Norberto, os entraves burocráticos que dificultam a importação do medicamento são fruto de desconhecimento e preconceito. “A cada seminário e debates sobre o assunto, acredito que ficará mais simples o processo de aquisição”, acredita.
Camila Xavier Gontijo Batista, há 17 anos sofre dor neuropática crônica e já passou por quatro cirurgias. “As dores se agravaram nos últimos quatro anos e não há medicamentos ou cirurgia que alivie”, conta.
Como Anny, Camila faz uso do CBD há quatro semanas e descreve os efeitos como “um bálsamo”. “O canabidiol reduziu os choques que me causam espasmos na perna esquerda, principalmente”, afirma.
Camila confessa que adquire o medicamento de forma ilegal, por meio de uma rede de apoio. Questionada por que não o acessa legalmente, ela diz que a autorização da Anvisa auxilia apenas as famílias que têm maior poder aquisitivo.
“Pelas vias legais, eu pagaria US$ 1 mil por mês, mas por meio da rede eu adquiro de graça”, relata, demonstrando desconforto e insegurança com a situação
“Primeiro, porque isso é ilegal e, depois, se algo acontecer com a rede eu e muita gente ficamos sem o medicamento. É revoltante, a burocracia me impede de adquirir legalmente um medicamento que me dá qualidade de vida”, revolta-se.
Maconha, não! – Marisa Lobo Franco Alves, psicóloga e coordenadora da Campanha “Maconha, Não”, se diz alinhada aos usuários de medicamentos à base de CBD. Segundo ela, o grupo já solicitou 29 audiências para debater e esclarecer a posição da campanha.
“Há uma confusão entre as pessoas. Não somos contra o uso medicinal do canabidiol. Somos contra a descriminalização da maconha para uso recreativo”, explica.
A coordenadora conta que o posicionamento do grupo será confirmado por meio de uma campanha para que os pacientes que usam CBD o adquiram a custo zero.
“Nós vamos visitar todos os gabinetes do Congresso para coletar assinaturas para um projeto de lei que facilite a importação para quem necessita do medicamento”, disse a psicóloga.
À margem – Com dor crônica neurológica há 10 anos a terapeuta ocupacional Juliana Paolinelli faz uso de medicamentos à base de CBD e THC. “É fundamental o uso de medicamentos à base de maconha para dores contra as quais não há cirurgia”, conta.
Ela disse que ganhou na Justiça o direito de importar o medicamento, mas que a burocracia a faz adquirir, assim como Camila, de forma ilegal.
“Já entrei em contato com o GW (laboratório que produz o sativex), mas eles disseram que não podem me vender diretamente, pois tenho de ter uma receita emitida por um médico estrangeiro”, narra.
Com isso, Juliana é obrigada a adquirir o medicamento de plantadores de maconha no Brasil.
Avanço irreversível – Pesquisador da maconha há décadas, o professor Elisaldo Carlini acredita que a resolução da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1961, que baniu a cannabis do uso médico, foi um grande desserviço para a humanidade.
“Por causa disso, há muita ideologia e credulidade que a maconha é coisa do diabo, derrete o cérebro e causa violência”, diz.
Carlini já realizou quatro simpósios sobre o uso medicinal da maconha, em São Paulo, onde estiveram autoridades federais e cientistas, mas as resoluções não passaram de promessas.
“Mais do que já foi falado e esclarecido sobre a maconha como medicamento é impossível”, afirma o professor.
Ele acredita que, apesar do atraso, o processo de adoção de medicamentos à base de canabidiol é irreversível. Cita como exemplo o fato de Conselho Estadual de Medicina de São Paulo (Cremesp) ter autorizado, por meio da Resolução nº 268, de outubro deste ano, médicos a prescreverem medicamentos à base de CBD.
“A pressão que existe a nível de Anvisa é de tal ordem que não se consegue modificar essa cultura”, afirma.
“Chegou o momento da Anvisa tomar uma posição, nem que seja para dizer não, mas que tome uma posição”, completa.
Por meio da assessoria de imprensa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou que a discussão sobre o enquadramento do Canabidiol não foi concluída pelo órgão. Diretores iniciaram o debate sobre a permanência ou não da substância na lista de produtos controlados no final de maio deste ano.
Atualmente, o CBD é considerado uma substância proscrita. Por isso, seu uso depende de autorização da Agência para a importação. Antes da votação foi solicitada vistas ao processo e o debate ainda não foi retomado internamente. A Anvisa não tem previsão de quando o tema voltará à pauta de discussões.
Por Guilherme Ferreira, da Agência PT de Notícias