Sempre que questionado sobre o cenário brasileiro, tenho me arriscado a dizer que vivemos hoje um “Direito de exceção”. Em uma livre interpretação, eu o definiria como uma versão judiciária do “Estado de exceção”. Se este significa a suspensão dos direitos fundamentais por um ato de governo para supostamente assegurar a ordem em momentos de anormalidade, o outro vai além. Implica não somente em revestir de legalidade a subversão da ordem jurídica, mas em assumir o próprio Judiciário o papel de soberano.
Para explicar, recorro a Carl Schmitt, um dos teóricos do nazismo. Ele justifica o “Estado de exceção” pela necessidade de o Estado ter um soberano, que detenha o poder absoluto de decidir. Este não estaria obrigado a obedecer às leis vigentes, podendo revogá-las, construí-las ou desconstruí-las. Deteria, portanto, o que Schmitt chama de “monopólio do Direito”.
O filósofo italiano Giorgio Agamben é um dos pensadores atuais a apontarem os riscos do “Estado de exceção”, que cada vez mais perderia o caráter de excepcionalidade para configurar um paradigma de governo. Nele, em nome do combate a um “inimigo”, o Estado se utilizaria de dispositivos legais para suprimir os limites de sua atuação, a própria legalidade e os direitos do cidadão. Como aponta o filósofo, “o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”.
A História é o nosso maior mestre. Não foi assim na Alemanha nazifascista, quando os inimigos eram os judeus, os homossexuais, os ciganos e outras minorias étnicas e sociais? Ou no Brasil, no Golpe de 1964, que tinha como inimigos os socialistas e subversivos? Da mesma forma ocorreu nos Estados Unidos, com o Patriot Act, editado em 2001, em reação ao ataque às Torres Gêmeas, quando foram suspensos os direitos civis de supostos suspeitos de terrorismo. Sempre com o argumento da defesa da pátria, ou em nome de valores etéreos, como religião e família.
Pergunto-me se hoje não estaria o Poder Judiciário brasileiro, em decisões correlatas à esfera política, assumindo o papel de soberano e legitimando a “exceção”. Não é novidade que em julgamentos recentes os tribunais desconsideraram as jurisprudências e até criaram outras. Foi assim, por exemplo, quando o Supremo Tribunal Federal descartou a autorização das Assembleias Legislativas para a abertura de processos contra governadores. Bem como no caso de ações arbitrárias, sem justificativa legal, a exemplo de prisões respaldadas somente em delações ou da condução coercitiva do ex-presidente Lula.
Tudo justificado pelo combate a um inimigo maior: a corrupção. Como se a praticada por agentes públicos fosse a maior, quando se sabe que 25% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial estão escondidos em paraísos fiscais, frutos da sonegação de impostos pelo setor privado, conforme aponta a organização internacional Global Financial Integrity.
Cabe também destacar a adoção de “dois pesos e duas medidas”, outra característica do “Direito de exceção”. Por mais que estejamos em campos opostos e que Aécio Neves tenha contribuído para este quadro, não posso deixar de destacar que as prisões de sua irmã, Andrea Neves e de seu primo, Fred Pacheco, não se justificam. Ambos são réus primários e não houve flagrante, nem coação de testemunha em curso de processo.
E os exemplos são muitos. Lembremos as prisões, de Marcelo Odebrecht, Antônio Palocci ou Delcídio Amaral, por suposta obstrução à Justiça, enquanto outros, como Romero Jucá, Geddel Vieira Lima, Aécio Neves, Zezé Perrela, os delatores da JBS e o próprio presidente Michel Temer, estão livres. O que me lembra do conceito de “lawfare”, termo inglês que representa o uso indevido dos recursos jurídicos para fins de perseguição política.
Se queremos consolidar nossa democracia, devemos cuidar para “não jogar fora a criança junto com a água suja da bacia”. Neste momento de crise, há que se ter coragem para fazer o debate franco na sociedade sobre o sistema político brasileiro. Para início de conversa, é preciso diferenciar a prática de Caixa 2 do crime de corrupção. O primeiro relaciona-se ao financiamento não oficial de campanha eleitoral e só chegou ao patamar atual porque o Brasil errou, ao não fazer a reforma política. O segundo diz respeito a enriquecimento ilícito, recebimento de propina, lavagem de dinheiro e contas no exterior, a exemplo das atribuídas a José Serra e Eduardo Cunha.
Que os processos judiciais sigam lastreados na isenção e na legalidade, e que cada um que pague pelo seu erro. Mas o fato é que o Brasil não pode mais esperar por uma lei que regulamente o financiamento de campanha, estabelecendo regras claras e rígidas, a partir de então. Sobretudo, é preciso criar condições para que se realize uma profunda reforma política.
Felizmente, a cada dia, ganha corpo a proposta de que a reforma deve ser elaborada e votada por uma Assembleia Constituinte eleita exclusivamente para este fim, a qual teria seis meses para concluir os trabalhos. Para garantir a imparcialidade, os deputados constituintes ficariam oito anos sem se candidatar. Caso algum deles já fosse parlamentar, deveria renunciar para integrar a Constituinte.
Espero que com a participação da sociedade, essa e outras propostas possam ser aprimoradas, a fim de que possamos superar este momento de exceção e voltar a respirar no Brasil os ares da democracia e da liberdade.
Por Durval Ângelo (PT-MG), deputado estadual e líder do governo na ALMG