Todas as cidades tem um “Cais Estelita”. Não precisam ser cidades grandes e litorâneas como Recife. Podem ser pequenas, incrustadas entre riachos e serras. Ou as cidades “dormitórios” nas quais os trabalhadores só chegam em casa tarde da noite, passando o dia a trabalhar para fazer as “riquezas” das metrópoles. De todo modo existem em todas um “Cais Estelita”.
Não tem cidade que não tenha uma velha catedral, uma estação de trem desativada, um instituto de educação, uma vila operária, um casarão histórico, ou qualquer outro pedaço de terra que conte a sua história. E nestas cidades, sempre irão aparecer agentes públicos ou privados querendo modificar esta paisagem, detonando o patrimônio histórico, artístico, ambiental e cultural em nome de um autointitulado “progresso”.
E vem do Recife, uma das cidades mais ativas, difusoras e relevantes para as manifestações que formam as culturas brasileiras (terra do Frevo, do Maracatu, do Forró, do artesanato de Mestre Vitalino e de seus seguidores, mais recentemente do Mangue-Beat, entre outros), um grito de alerta em defesa do patrimônio, liderado pelo Movimento Ocupe Estelita (MOE). Este coletivo cultural, ficou grande e massivo, lutando incansavelmente para impedir a demolição do Cais José Estelita, opondo-se frontalmente a construção de torres do denominado Projeto Novo Recife.
Eles argumentam – com o que temos total acordo – que o pátio ferroviário do Cais José Estelita – o segundo mais antigo do país-, está em processo de tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), portanto este bem cultural deve ser preservado.
Mas como as forças ocultas e estranhas do “Deus-Mercado” operam nas sombras e influenciam setores expressivos dos poderes executivo e legislativo, a Câmara dos Vereadores do Recife, aprovou em 04 de maio, em uma sessão relâmpago a demolição do Cais José Estelita, para a construção de um grande condomínio residencial e comercial.
Recife que tanto nos influencia com a sua diversidade de manifestações e ícones culturais, também nos influencia para a luta, trazendo a questão do patrimônio para o centro de um debate pelos direito à cidade e à cultura e propondo uma política cultural e urbana que preserve os interesses da coletividade, quais sejam a necessidade do lazer, do bem-estar comum, a salvaguarda da paisagem urbana e ambiental e principalmente a possibilidade de opinar e decidir sobre o que deve acontecer ou não nas cidades.
Não é uma questão menor e como dissemos no início deste artigo, existem muitas “estelitas” Brasil afora. O Rio de Janeiro “olímpico” está passando por problemas e tensões semelhantes, no Porto, na Lapa, no “novo Rio Antigo”. Salvador passou e passa por isso, permanentemente no Centro Histórico. De Norte a Sul teríamos exemplos a demonstrar.
Brasil adentro temos visto a mercantilização e a espetacularização das cidades e das culturas (grandes festivais e exposições circulando, eventos esportivos mundiais ou regionais, “revitalizações das áreas históricas” etc.). Neste esquema os projetos, áreas e bairros “decadentes” ou mais “simples” são descartados(como se fosse um jogo, uma brincadeira, uma ficção), para darem vez “ao novo”, a preparação das cidades para o “futuro”. Geralmente pelo viés do mercado e de forma autoritárias, não inclusiva e democrática.
E neste quadro, a cultura, passa por situações contraditórias. Ao mesmo tempo que é a vítima principal da “revitalização das cidades”, o que atinge o modo de ser,de viver, de estar e de produzir símbolos, modifica fisicamente o território, os casarios, etc., a cultura, ou a “economia criativa” é também “beneficiária” do processo: novos espaços culturais surgem, casas de shows, etc. E em alguns casos o que ocorre é justamente o uso – programado, explícito ou não – de elementos, projetos, produtos e manifestações culturais como paliativos de exclusões sociais, gentrificação, entre outros processos que agudizam ainda mais as desigualdades socioeconômicas e culturais.
Não é exagerado lembrar, que infelizmente, é um modelo que atinge administradores de todas as posições políticas – mesmo as gestões progressistas e de esquerda encantam-se com esta lógica, de olho nos “benefícios” que podem ser gerados para as cidades e seus moradores.
Nestas políticas as cidades são vendidas como produtos turísticos – esvaziando-se a maioria das características locais, privilegiando-se o que é vendável.
Mas, para nós, na prática, o que ocorre aqui é a negação do direito à cultura. Quanto maior for a mercantilização das cidades, menor é a participação do cidadão e das culturas, a não ser que estas aceitem a pasteurização proposta pelo “mercado”.
Mas, como dissemos, ações culturais de resistência como o “Movimento Ocupe Estelita”, os diversos grupos e artistas de rua, os saraus nas “periferias” e cidades metropolitanas e interioranas, os cineclubes, as retomadas de tradições culturais “regionais”, a cultura urbana, as rodas e batalhas de rima, dança e música do hip-hop, entre outros, muitos outros, são alternativas para outra culturalização das cidades, desta vez pelo viés democrático e negando a mercantilização.
Os militantes de esquerda, estando em gestões públicas de cultura podem e devem contribuir para apoiar esta emergência da sociedade civil na área. E a grande maioria, que não está nas administrações já está – como somos cotidianamente informados pelas redes sociais, chamadas públicas, comunicação alternativa, etc. – participando, apoiando, criando, instigando, aprendendo e construindo novas formas de ação cultural. Já estão ocupando as diversas “estelitas” brasileiras e dizendo “outra cidade e outra forma de fazer cultura são possíveis”.
Edmilson Souza é vereador licenciado, Secretário Municipal de Cultura de Guarulhos e Secretário Nacional de Cultura do Partido dos Trabalhadores