Todos os dias, o professor Batista Nascimento Silva passa pela Curva do S, na rodovia BR-155, ao menos duas vezes. Geralmente, pela manhã e no fim da tarde. A rodovia liga sua casa, no Assentamento Lourival Santana, em Eldorado dos Carajás (PA), ao município de Marabá, onde ele também trabalha como sindicalista.
Mais do que isso, a estrada foi também o local onde Batista assistiu e sobreviveu, há 23 anos, a um massacre que vitimou 21 trabalhadores rurais; entre eles, rostos conhecidos do então garoto de 15 anos.
Filho de pais agricultores, que trabalhavam em propriedades particulares como rendeiros, a família de Batista entrou para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) seis meses antes do episódio, em novembro de 1995.
No dia 16 de abril de 1996, eles se juntaram aos cerca de 1,5 mil sem-terra que se encaminhavam a Belém para cobrar as autoridades sobre a situação dos acampamentos na região sudoeste do estado.
Os militantes fechavam a pista por cerca de duas horas, quando policiais militares chegaram para desobstruir a rodovia. Os sem-terra reivindicaram um ônibus para conduzir as famílias até Marabá. Sem acordo, os policiais militares disseram que não atenderiam à demanda. Por volta das 15h, um efetivo de agentes dos três municípios do entorno — Parauapebas, Curionópolis e Eldorado dos Carajás — chegaram para forçar a retirada das famílias da rodovia.
Batista lembra do som do que parecia de bombas. “Naquele momento, os trabalhadores tinham ferramentas de trabalho, viram alguns trabalhadores caindo e tentaram partir, até como um processo de proteção. Mas [o embate] só se acirrou. Chegou outro batalhão e fechou os trabalhadores. Foi o que de fato aconteceu”, relembra. Além dos trabalhadores mortos, a ação, que envolveu 155 policiais militares, deixou outros 69 mutilados.
Durante a operação policial, o menino estava com a minha mãe e seus quatro irmãos. “Meu pai não estava porque pela manhã ele tinha saído para ir no acampamento. Quando ele retornou, não deu para ele passar, e ele ficou só assistindo”, conta. Enquanto a polícia abria fogo contra os sem-terra, Batista se perdeu. Só encontrou sua mãe oito horas depois, por volta das 23h. Já sua irmã mais nova, de apenas 5 anos, só foi encontrada no dia seguinte, às 8h da manhã.
“A memória fica arraigada, fica gravada”, conta Batista mais de duas décadas depois. “O mais gritante, que sempre lembro, é ver policiais atirando em pessoas que você conhece, vendo elas caindo, atiradas. Tu olha para um lado e vê outra pessoa correndo, tipo um cenário de guerra”, relembra.
“Ver um colega de infância com um tiro no olho e a mãe desesperada, sem saber o que fazer, entendeu? São essas coisas assim. Quando tu volta para o local, tu vê diversas partes de corpo jogadas na pista, resultado dos estraçalhados dos tiros. Pedaços de miolos, de cabeças, essas coisas. São coisas que você não consegue apagar da memória, por mais que tu tente.”
Continuidade da luta
Em uma reportagem de uma TV local, feita na manhã seguinte ao Massacre de Eldorado dos Carajás, o adolescente Batista dá uma entrevista. O menino está visivelmente abalado, mas é firme quando questionado se seguiria na luta por reforma agrária: “Eu acho que não pode desistir, não. Só se minha mãe e meu pai desistirem, mas eu não tenho vontade, não”, diz no vídeo.
De fato, o menino não desistiu; hoje, aos 38 anos, permanece na militância do MST. Naquele período, a organização se consolidava na região. O movimento começou seu processo de territorialização no Pará em 1989, com uma série de novas ocupações impulsionava a organização dos trabalhadores rurais no estado. Ele relata que muitas famílias desistiram da luta por temer aumento da violência na região.
“A partir do momento que essas pessoas tiveram seu sonho interrompido, aqueles que foram assassinados, as famílias dos que perderam quem foi assassinado, eu me senti com uma responsabilidade de seguir com aquele sonho. Tanto para que as pessoas que sobreviveram pudessem realizá-lo quanto como outros em que eu pudesse despertar essa sensibilidade de sonhar ou fazer parte dessa luta”, diz.
Duas décadas depois, Batista relaciona a impunidade dos policiais envolvidos no Massacre de Eldorado dos Carajás à violência no campo, que ainda persiste no estado. Em 2017, o estado foi palco, mais uma vez, de um massacre que vitimou dez sem-terra, em Pau D’Arco, além de liderar a lista de assassinatos no campo, produzida pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).
“Se acontece um fato de uma dimensão como foi o massacre de Eldorado, em que 155 policiais não são punidos, não pagam pelo ato que cometeram, aquilo desperta outros a agirem da mesma forma. Isso gera uma jurisprudência para o crime organizado no campo. Não é à toa que o estado do Pará carrega essa triste posição de ser o campeão de assassinatos por conflito agrário”, avalia ele.
A Curva do S também foi o local escolhido pelo o atual presidente Jair Bolsonaro (PSL) para afirmar, durante a campanha presidencial, que “os policiais reagiram para não morrer”. “Quem tinha que estar preso era o pessoal do MST, gente canalha e vagabunda”, disse o presidente no local dos assassinatos, em julho de 2018.
Contra esse tipo de declaração, Batista faz um trabalho de contra-narrativa e memória. Todos os anos, ele recebe comitivas, caravanas de alunos universitários, de escolas de ensino médio que vão para conhecer a história do local. Na semana que antecede o dia 17 de abril, várias adolescentes, de diversas organizações do país, realizam o Acampamento Pedagógico da Juventude Camponesa, realizado na Curva do S.
“É um espaço onde a juventude camponesa faz um processo de formação política e cultural. E também [é importante] fazer um diálogo com a sociedade, para que a sociedade possa perceber essa dimensão cultural e da memória dos mortos, dos que perderam suas vidas na defesa de um mundo melhor, de uma sociedade onde todos possam ter voz e vez.”
Vez ou outra, ele conta, Batista percebe seus olhos lacrimejados quando participa de alguma atividade que reconta a memória do Massacre do Eldorado dos Carajás: “São coisas que de repente voltam, é como se fosse um reprise de um filme. Aí tu vivencia na memória tudo de novo. Eu diria que fiquei um pouco assustado no momento, depois usei aquilo como um processo de fortalecimento, e eu vi que a luta era possível. Alguns companheiros tiveram seus sonhos interrompidos, mas ficaram outros para fazer valer aqueles sonhos e assim seguir a luta.”
A estrada que é caminho diário de Batista também abriga a Casa da Memória, que guardam peças, fotos, objetos que ajudam a contar a história do massacre. Em frente à Casa, dezenove troncos de castanheiras foram colocados para simbolizar os 19 sem-terra assassinados no local – 2 morreram no hospital, em consequência do massacre. Visto do alto, as castanheiras se unem e tomam forma do mapa do Brasil, lembrando que o país também é construído pela luta e sangue dos trabalhadores.
Por Brasil de Fato